Foi um dia de clima agradável em São Paulo, algo que vem se tornando cada vez mais difícil nessa época para quem não é amante do frio, como eu. É bem verdade que estamos no inverno, mas nem sempre, nessa terra tropical, faz frio no inverno.
O clima agradável era um prenúncio de algo que aconteceria na cidade. Ninguém que acordou no último sábado, dia 02 de Julho portando um ingressos para o show do Angra daquela mesma noite teve uma rotina normal, era um dia diferente, havia, de fato, alguma coisa no ar.
E quando o assunto é Angra, geralmente o que está no ar é treta. Alguns corriam para as redes sociais para verificar vídeos das apresentações anteriores, davam uma olhada no setlist para reclamar da falta dessa ou daquela música, alguns iam defender a performance de um ou outro integrante contra ‘haters‘.
Mas ainda assim, havia algo diferente no ar. E não havia quem pudesse apontar exatamente o que era.
Sem fazer exceção à regra, ‘treta‘ foi algo que esteve muito envolvido no contexto de mais esse capítulo na história da banda. Essa turnê do Angra se envolveu em muitas polêmicas que vão desde convites públicos do fundador Rafael Bittencourt a ex-membros da banda para participar da celebração, como uma tour marcada por Edu Falaschi de forma paralela, celebrando os 20 anos do mesmo álbum. Tudo isso cercado por um período no pico da pandemia em que a banda se mostrou pouco ativa, trocou de empresário (retomando a parceria com Paulo Barón) e algumas trocas de farpas públicas entre membros e ex-membros.
Tudo isso ainda transformando os grupos de Facebook que reúnem fãs formarem verdadeiros ‘campos de batalha’ de discussões virtuais defendendo ou atacando lado A e/ou B (em “bate-bocas” sempre rasos e improdutivos, diga-se de passagem).
Enfim, uma banda como o Angra, capaz de apaixonar radicalmente sua base de fãs, sempre vai mexer com emoções extremas e esse tipo de reação irracional e apaixonada é realmente esperada, o que nos leva à noite de hoje.
De fato, não era um show normal. O Angra voltava aos palcos depois da parada forçada pela pandemia (e que todas as bandas do mundo tiveram que encarar também), celebrando os 20 anos de um de seus trabalhos mais icônicos, Rebirth (2001) que foi o responsável por nutrir toda uma nova geração de fãs da banda que estava entrando em contato com a banda pela primeira vez, ou que vinha de um longo processo de luto após a saída de 3 dos 5 integrantes da banda, após a tour de Fireworks (1998). Muitas emoções estavam prestes a serem revividas e novas criadas naquela noite. De fato, não era um dia comum para quem portava um ingresso para o show do Angra do dia 02 de Julho de 2022.
Com a concentração de fãs em volta do Tokio Marine Hall, a inquietação crescia. Muita ansiedade, muita gente querendo saber como seria ver músicas que há muitos anos não figuravam no setlist, outras pessoas reclamando porque no show de um, dois, 5 dias atrás, um trecho da música havia sido mal executada, algumas pessoas (como eu) retornando a grandes eventos presenciais pela 1a vez desde que aquela ̶m̶e̶r̶d̶a̶ doença chegou em terras tupiniquins.
Com os portões abertos e todos se acomodando, a ansiedade cresceu. Dentro da casa de show ninguém conseguia ficar parado. Alguns estalavam o dedo, outros prendiam o cabelo, arrumavam o óculos, checavam no celular se realmente AQUELA música iria tocar. A cada minuto pareciam 2 horas.
A luz se apaga e a banda de abertura é anunciada.
A competente banda Medjay fez uma performance segura apresentando seu Heavy/Power metal para um público que os recebeu muito bem.
A sensação que fica após os aproximadamente 30 a 35 minutos de apresentação do Medjay é de ter visto uma banda que tem todos os elementos necessários para um futuro promissor. O tempo nos mostrará se irão aproveitar essa chance.
É muito comum ouvir do público o coro de ‘au au au, o Shaman é pontual‘ como brincadeira antes dos shows do Angra quando a banda demora para entrar no palco, mas dessa vez não foi necessário. Pouco após o fim da banda de abertura, exatamente às 22h10 as primeiras notas de ‘Crossing‘ abertura do icônico Holy Land (1996) são ouvidas.
O Angra está no palco!
A banda começa com a poderosa Nothing To Say, executada de forma impecável e muito acima da média das últimas vezes que eu havia visto o Angra ao vivo, o que me fez arregalar os olhos e perceber que aquele show não seria especial apenas por celebrar o Rebirth. Aquele show seria DIFERENTE.
As primeiras notas de Black Widow’s Web soam e já fazem uma viagem no tempo, de 1996 passeando pela “1ª geração” da banda para Ømni (2018), até o momento, o mais recente álbum da banda e representante da “3ª” e atual geração da banda. Essa música chama muita atenção por contar com duas participações especiais bem diferentes (para dizer o mínimo) a voz doce de Sandy e a voz agressiva de Alissa White-Gluz (Arch Enemy). Ao vivo a banda tomou a (errada, em minha opinião) decisão de, em muitas vezes, colocar o Fabio Lione para reproduzir os vocais carregados de distorções de Alissa. Embora Lione sempre tenha deixado claro que sabia executar técnicas para reproduzir de maneira semelhante o vocal de Alissa, sempre ficou claro que ele não é um perito em distorções vocais (e, para ser sincero, nunca me soou nada bem) mas, para a minha surpresa, das vezes que presenciei ao vivo Lione arriscando uns “berros” essa foi a primeira vez que soou até que legal! Não sei se ele estudou ou simplesmente estava inspirado, mas foi a melhor execução dessa música que eu vi desses trechos. É preciso destacar que Rafael Bittencourt executa de maneira muito legal a introdução gravada pela Sandy!
Sem muito tempo para enrolação, Lione agradece a presença do público e In Excelsis começa a tocar. Todos sabem o que está acontecendo, a atração principal da noite, Rebirth na íntegra, acaba de começar!
Nova Era começa e é extremamente bem executada, a banda se mostra muito afiada nessa música. Não sei se o período longe dos palcos fez bem para os integrantes da banda, se tiveram mais tempo para ensaiar e, assim, estarem mais seguros no palco. Não sei o que aconteceu, mas há muito tempo não via o Angra tão “banda” em palco. Não eram 5 músicos executando um setlist para o público (até porque haviam sempre pelo menos 2 participações especiais no palco rsrs), eram uma banda tocando junta, com muita vontade de entregar o melhor show possível e há muito tempo eu não conseguia ver o Angra com esses olhos!
Falando em participações especiais, o Angra estava municiado de um tecladista (Dio Lima) e um percussionista (Guga Machado). E é incrível como um tecladista “de verdade” no palco faz diferença! A introdução de Millenium Sun foi perfeita, extremamente cativante, com um Fabio Lione cantando à vontade!
Queria aproveitar que estamos falando de Millenium Sun para abrir parênteses e falar do Sr. Fabio Lione.
É verdade que o cargo de vocalista do Angra é, talvez, o cargo mais ingrato do metal nacional, mas Lione é muito mais criticado do que qualquer outro membro da banda. Às vezes de forma justa, muitas vezes de forma exagerada. (Até este reles escritor de resenha tem diversas críticas a fazer à performance de Lione no Angra, em termos gerais)
Mas quero apontar que eu sou um dos que pode dizer que vem acompanhando a trajetória de Fabio Lione no Angra, literalmente, desde o começo.
Eu estava à bordo do Majesty of The Seas em 28 de janeiro de 2013 para o início do 70000tons Of Metal. No segundo dia de festival, dia 29/janeiro Lione subia no palco com o Angra pela 1a vez na história da banda, subindo pela 2a vez dois dias depois, no dia 31/janeiro (nesse festival, cada banda toca 2 vezes).
E eu lembro que foram duas apresentações muito legais. Lione não era vocalista oficial da banda, era considerado apenas uma participação, faria apenas esses dois shows.
Algumas das críticas que Lione recebe até os dias de hoje podiam já ser vistas naquelas apresentações de 2013.
Uma das que mais me marcou foi justamente ele ter esquecido de cantar um trecho inteiro na Millenium Sun. Na época, foi compreensível devido ao pouco tempo para se preparar para os shows.
Mas Lione costuma apresentar constantes erros de letra e às vezes esquece de cantar um trecho ou outro.
Ao celebrar 20 anos do Rebirth, é justo apontarmos que Lione errou letras, bastante. Também é justo apontar que esse erro foi muito menor do que no passado. Muito.
Embora ainda apresente falhas, vem evoluindo.
E o trecho que ele esqueceu de cantar em 2013? Cantou de maneira maravilhosa em 2022.
Acid Rain me arrepiou com a plateia cantando a introdução em latim a plenos pulmões! O Show foi transmitido pela internet, me mostraram um trecho pouco antes de eu finalizar esse texto e é uma pena que a captação do público não tenha sido fiel à experiência presencial. O público roubou a cena nessa introdução!
Voltando a falar de Lione, às vezes ele usa uma técnica para atingir notas extremamente agudas que, sendo sincero, eu não gosto. Nesse show ele parece ter resolvido economizar nessa técnica, buscando interpretar as músicas de outras formas. Ponto positivo! Em Acid Rain ele cantou realmente demais!
Heroes Of Sand também foi cantada a plenos pulmões por todos os presentes.
Foi muito legal notar que o clima da banda no palco estava ótimo! Sorrisos sinceros e leves no palco, estavam todos felizes de estar entregando aquele verdadeiro espetáculo! Lione estava esbanjando técnica e carisma. Andreoli tocava “solto”. Rafael Bittencourt um show a parte se mostrava muito alegre no palco!
Notavam-se muitas brincadeiras entre Lione e Barbosa. Estavam todos felizes!
E tudo isso se refletiu na excelente performance e execução coletiva.
Unholy Wars começa. Antes dessa tour, o Angra não a tocava há muito tempo. Algumas fontes diziam que desde 2002 não era tocada. Não tive tempo de checar a veracidade.
É uma música muito subestimada pela banda, uma das mais legais, traz muito das raízes brasileiras da banda, e alguns dos melhores riffs do Rebirth, além de um refrão poderoso!
E é preciso falar da interpretação de Lione, cantou como se já a cantasse na banda há anos!
Eu mencionei que o Angra estava com dois convidados: o tecladista Dio Lima e o percussionista Guga Machado.
É preciso falar que, Guga Machado conseguiu roubar a cena algumas vezes, e uma delas foi justamente no meio de Unholy Wars! Quanto feeling! Quanta presença de palco! Esse cara é um monstro! Com um músico tão qualificado na percussão, lamento que a banda tenha perdido a chance de explorar, no setlist, músicas que o favorecessem, como Hunters And Prey.
O Show prossegue com uma música atrás da outra, e, se em Heroes of Sand algumas lágrimas foram seguradas, aqui em Rebirth, muitos desabaram, lembrando de momentos de suas vidas em que a banda esteve ali do lado.
Rebirth é uma música apoteótica, um hit, uma mensagem que a banda passava para os fãs sobre o momento em que estavam vivendo, mas que cada fã pegou para si e ressignificou de forma própria. Cada pessoa ali presente, cerca de 4 mil pessoas, tinham cerca de 4 mil histórias diferentes de vida para serem contadas. E em TODAS havia pelo menos um capítulo em que Rebirth foi trilha sonora.
Esse tipo de história, esse tipo de significância, esse tipo de influência na vida das pessoas. Não existe como medir, não existe forma de precificar, não existe forma sequer de reproduzir. Rebirth é uma música diferente e é incrível como até o clima da casa de show mudou.
Existiu um show do Angra, e um show da música Rebirth, e, depois disso, de volta ao show do Angra.
A banda traz ao palco um piano de cauda e uma convidada especial: a pianista Juliana D’Agostini. Incrível ver como Judgement Day soou tão bem executada com um piano muito semelhante à versão original de Estúdio. Provavelmente foi executada pela 1a vez dessa forma.
É uma música que eu gosto muito, e gostaria que o Angra a tocasse mais.
Running Alone, ainda com a presença de Juliana D’Agostini era uma das músicas mais esperadas do Set e não decepcionou. Lione a executou de forma sublime! E cantou muito bem “aquele” final!
E começa Visions Prelude. Uma música jamais executada até essa tour. Eu estava particularmente curioso para vê-la com D’Agostini no palco.
A música soa muito mais melancólica ao vivo e o piano de cauda deu um toque muito especial à beleza da música e à melancolia extra.
E que interpretação de Lione. Não acho que existam palavrar para descrever, mas eu vou tentar: Estamos em 2022. Neste ano são completados 10 anos desde que o Edu saiu da banda, após ter ficado na banda por 12 anos. (Lione estreou em janeiro de 2013) Em breve a carreira do Edu pós-Angra será mais longeva do que sua carreira no Angra. Em breve será possível falar que o Lione está no Angra há mais tempo do que qualquer outro vocalista. E muitos fãs (inclusive este que vos fala) parece não enxergar o Lione dessa forma.
Por bem ou por mal, Lione é a voz do Angra.
E quem ainda não aceita isso, PRECISA ver Visions Prelude ao vivo.
Com todo respeito a Edu Falaschi. Lione usurpou a música e a tomou para si mesmo. Parece que ela foi criada para ele.
Uma interpretação única que somente ele é capaz de fazer para essa música, deu uma cara completamente diferente e um significado completamente novo para essa música. A forma como ele visualizou e aplicou suas técnicas de ópera nessa música criaram uma personalidade tão nova que não parece a mesma música gravada em estúdio. É impressionante o que ele fez com essa música.
Não que a original seja pior do que a versão de Lione. Simplesmente são músicas diferentes!
E estava feito. O público havia testemunhado o Rebirth na íntegra. Mas nem público e nem banda estavam satisfeitos. Como no início do show, era hora de viajar no tempo e percorrer todas as fases da carreira do Angra. Como Holy Land e Ømni já haviam sido homenageados, um berimbau anunciava The Course of Nature (uma das minhas favoritas) do Aurora Consurgens (2006) era executada ao vivo depois de muito tempo e de forma impecável. O berimbau ao vivo deu um toque especial, não sei dizer se já havia sido feito antes! Uma pena que senti o público meio ‘morno’ nessa música, mas talvez a maioria ainda estava boquiaberta pela Visions Prelude.
As guitarras anunciam Metal Icarus do (injustiçado e perfeito) Fireworks (1998) e fiquei extremamente feliz de perceber a reação do público com ela. Não esperava que essa música fosse tão popular e iria deixar o público tão empolgado!
Todo mundo já sabia o que esperar quando Rafael Bittencourt pega um violão. Shadow Hunter é uma das músicas mais criativas de Temple Of Shadows (2004) e, provavelmente, a música mais criticada na internet ao longo dessa turnê. Lione soube se poupar para evitar maiores desgastes em outras músicas e manteve as notas, na medida do possível, dentro de sua zona de conforto, independentemente de como fosse a versão original. A banda a executou perfeitamente.
Para representar outro álbum injustiçado, o Aqua (2010) a banda toca Rage of The Waters. Eu acho que todas as vezes que a vi ao vivo, foi com Rafael Bittencourt a cantando, e confesso que sempre gostei. Dessa vez foi Fabio Lione. E ficou super legal!
Rafael Bittencourt pede para todos acenderem as luzes de seu celular para tocar Bleeding Heart, do EP Hunters And Prey (2002), que foi executada com perfeição (mas eu ainda teria escolhido a própria Hunters And Prey).
Upper Levels de Secret Garden (2014) encaminha o show para o seu final servindo para coroar a apresentação impecável de Felipe Andreoli. Cada vez mais imponente em palco, assumindo a frente do palco diversas vezes, executando todas as linhas com perfeição, e uma presença de palco cada vez mais forte!
Um momento de respiro em que a banda sai do palco, mas sem muitas delongas, Unfinished Allegro anuncia a chave de ouro que fecharia essa noite mágica.
Carry On encerrava o show com o astral lá em cima (embora tenha sido, provavelmente a pior execução do show, mas que ninguém presente ligou!).
Lágrimas, sorrisos, fortes emoções. Tudo que um show do Angra representa estava lá para todos que estavam presentes! Uma noite mágica e espetacular!
Nada, nenhum vídeo shows anteriores, nenhuma percepção prévia, absolutamente nada do que você sabe sobre o Angra poderia te preparar para o que estava por vir nessa noite. Foi a melhor performance de Fabio Lione que já presenciei no Angra! Mostrando uma força de vontade, um tesão por cantar e encantar que eu nunca havia visto desde 2013! Com um time de instrumentistas afiadíssimo!
É com certa facilidade que afirmo que estamos presenciando o auge da atual formação do Angra e, se é verdade as diversas declarações do líder da banda, Rafael Bittencourt, de que essa é a melhor formação que o Angra já teve, então se preparem, pois o futuro é agora! Não consigo mais me conter na expectativa do que a banda deve trazer no seu próximo trabalho de inéditas!
Neste momento, a simbologia do Renascimento, que foi tão forte em 2001, se mostra mais sólida e poderosa em 2022, pois estamos enfrentando justamente isso, um momento de renascimento da sociedade com a redefinição do que é normal, do que podemos fazer, do que não podemos, nos reencontrando como pessoas e nos reencontrando com amigos. Esse período gerou um fenômeno novo, o de ‘reencontrar’ pessoas que você nunca havia visto presencialmente.
E foi no Renascimento que o Angra celebrou seu passado, sua história, e sempre apontando para um futuro promissor e otimista. Assim como todos nós sofremos com a pandemia, e muitos ainda sofrem (pois a pandemia NÃO acabou!), o Angra fez questão de nos lembrar de que dias melhores virão. Para a banda, para os fãs, para o mundo.
TODAS AS FOTOS POR CARLOS PUPO, editor do HEADBANGERS NEWS.