A banda Miasthenia é um dos pilares do pagan black metal brasileiro, conhecida por sua fusão única de atmosferas épicas, letras profundas e uma temática que mergulha na história e ancestralidade das culturas latino-americanas. Formada em Brasília em 1994, a banda construiu uma sólida reputação no cenário underground, destacando-se por seu compromisso com a autenticidade artística e a valorização das raízes culturais.

No centro desse projeto está Susane Hécate, vocalista, tecladista, compositora e uma das fundadoras da Miasthenia. Além de sua habilidade musical, Susane é historiadora, escritora e autora do livro “Por uma História do Possível: Representações das Mulheres Incas nas Crônicas e na Historiografia”. Sua obra literária e acadêmica dialoga diretamente com sua música, conectando a resistência cultural e histórica com o peso e a intensidade do black metal.

Com mais de duas décadas de trajetória, Susane e a Miasthenia seguem como referências no pagan black metal, tanto no Brasil quanto internacionalmente, mantendo-se fieis à proposta de criar uma arte que é, ao mesmo tempo, sombria, poderosa e profundamente enraizada na história do nosso continente.

Seja muito bem vinda ao Headbangers Brasil, Susane. É um imenso prazer entrevistá-la.

Headbangers Brasil (HBr): Como você descreveria a evolução musical e temática da Miasthenia desde o início da banda até o lançamento de Espíritos Rupestres?

Susane Hecate (SH): O Miasthenia completa agora 31 anos de carreira e com o tempo acumulamos experiência e amadurecimento musical e temático. Nós apostamos, desde o início da banda, na mesma proposta sonora e temática e seguimos evoluindo nesse mesmo caminho porque ainda é profundamente inspirador e desafiador. Construímos uma identidade sonora e temática que se abre para muitas possibilidades, por isso estamos sempre incorporando novas histórias à temática das letras, mas também temos buscado evoluir em termos técnicos e de qualidade sonora.

HBr: Espíritos Rupestres tem uma proposta temática única. O que inspirou a banda a explorar histórias pré-colombianas e elementos das culturas indígenas brasileiras?

Resenha para o disco aqui

SH: A inspiração pela abordagem destes temas é algo que nasce com a banda em 1994 e que vem acompanhando também a minha imersão acadêmica na história da América pré-colombiana e da resistência indígena ao colonialismo.  Espíritos Rupestres une uma série de temas que já vínhamos abordando em nossas letras como inquisição, bruxaria, xamanismo e resistência indígena colonial, mas a junção de tudo isso em um conto de ficção histórica expandiu ainda mais a nossa experiência artística, costurando muito bem sonoridade e literatura num álbum conceitual. Importante dizer também que no início dos anos 1990 estavam surgindo algumas bandas europeias de Pagan Black Metal em um movimento, no interior do próprio Black Metal, de busca por temas ligados ao antigo paganismo. Para nós isso veio também como resultado de um desejo de conhecer mais a fundo o satanismo, o ocultismo e a bruxaria, temas que nossa sociedade sempre tratou de maneira muito preconceituosa, superficial e pejorativa partir de olhar cristão demonológico. A imersão pela história da bruxaria e o processo de demonização e perseguição aos antigos cultos pagãos na Europa me conduziu também ao estudo das formas de perseguição e destruição dos cultos ameríndios pelos colonizadores europeus no século XVI, em uma busca pelas formas de resistência à evangelização em nosso próprio continente. Então o Miasthenia surge com essa proposta temática/conceitual em torno da resistência pagã e para isso foi fundamental mergulhar no universo das culturas ameríndias pré-colombianas. Tematicamente, Espíritos Rupestres é resultado dessa busca por aprofundamento em temas que dão densidade e potência à nossa proposta musical.

HBR: Quais foram os principais desafios e inspirações para criar uma música tão carregada de história e emoção como Tapuia Marcha?

SH: O desafio foi fundir plenamente a temática e a sonoridade para soar como uma trilha sonora de guerra, violência e força para uma história sangrenta e de muita resiliência. A inspiração para Tapuia Marcha veio de várias leituras relacionadas à história da Guerra dos Bárbaros, uma grande resistência indígena que dominou o sertão do nordeste entre os séculos XVII e XVIII. É uma história ainda silenciada nos livros didáticos escolares e que precisa ser rememorada, por nos trazer ensinamentos potentes acerca da resistência, insubmissão, coletividade e força dos povos indígenas, aspectos muitos apagados da história colonial brasileira que construiu apenas os europeus como grandes heróis e conquistadores. A marcha dos Tapuias, composta por uma diversidade de etnias reunidas naquele episódio histórico, também nos inspira a lutar e resistir contra a ignorância e dominação nos dias de hoje.

HBr: Seu conto A Bruxa Xamã foi a base para o single. Você planeja explorar mais narrativas literárias dentro do universo da Miasthenia?

SH: Sim, e para isso venho estudando formas de escrita criativa e ficção histórica, pensando e pesquisando acontecimentos históricos que sejam profundamente inspiradores para a nossa proposta musical.

Miasthenia

HBr: Como foi o processo de gravação de Espíritos Rupestres?

SH: O processo de gravação desse álbum, diferente dos anteriores, se deu após duas pré-produções entre 2020 e 2022. Com a entrada de Lith na bateria e Aletéa iniciamos a segunda pré-produção em 2022, onde buscamos gravar, ouvir e tocar em ensaios o que estávamos produzindo, buscando lapidar, aprimorar, compor novos trechos e recriar algumas partes até atingir uma sonoridade ideal e coesa. No início de 2023 começamos as gravações no Orbis estúdio aqui em Brasília e esse processo durou quase um ano e foi muito tranquilo, porque esteve nas mãos de Marcos Pagani, um técnico muito competente, paciente e atencioso que nos proporcionou um ambiente de gravação muito receptivo, agradável e de grande qualidade.

HBr: A identidade visual sempre foi marcante nos trabalhos da banda. Qual foi a contribuição de Slanderer para o conceito visual do álbum?

SH: Slanderer já vinha colaborando conosco na diagramação dos encartes de nossos dois últimos álbuns. Ele já conhecia muito bem a nossa proposta estética para os encartes, além de ser um grande parceiro e irmão que nos apoia desde o início. O processo de diagramação do encarte do digibook de Espíritos Rupestres foi demorado, foram 3 meses de intenso trabalho e ficamos muito satisfeitos com o resultado. Ele é uma pessoa muito respeitosa e tranquila, o que enaltece ainda mais o seu perfil profissional na arte gráfica.

HBr: Como você enxerga a cena brasileira de metal extremo hoje? O quanto o público tem valorizado bandas que trazem temas históricos e culturais?

SH: A cena de metal extremo no Brasil é muito underground e se move mesmo pela grande paixão daqueles que integram uma grande rede de bandas, selos, curtidores, zines, mídias digitais e produtoras de shows. As dificuldades de espaços para shows e de produções de discos de qualidade ainda se devem ao fato de que no Brasil o metal extremo ainda é muito marginalizado e mal visto pela sociedade. Mas graças a essa rede underground nós encontramos apoio, respeito e certo espaço para divulgação de nossa arte. Vem crescendo o número de bandas que abordam temas históricos e culturais em suas letras e aos poucos eu vejo que o público vem passando a se interessar cada vez mais pelo conteúdo das letras.

HBr: Quais foram os maiores desafios enfrentados pela Miasthenia ao longo dos anos para manter a autenticidade e relevância no cenário underground?

SH: O maior desafio sempre foi produzir álbuns de qualidade sonora. Travamos batalhas intensas e exaustivas na produção de cada álbum do Miasthenia, dedicando muito tempo, energia e recursos financeiros para isso. Para manter a nossa proposta e tentar sempre dar o nosso melhor, nós imergimos profundamente na concepção sonora e literária de cada disco, e isso demanda tempo, paciência e dedicação, algo que fazemos mesmo por enorme paixão, porque dá muito trabalho, mas o resultado ainda é compensador.

Hbr: Para você, qual é o papel da mulher na música extrema? E qual é o papel da música extrema como ferramenta de resistência cultural e valorização da história brasileira?

SH: As mulheres podem assumir os papeis que elas quiserem nesse espaço, somos seres livres e plurais. Hoje elas estão atuando em todas as frentes, não só como curtidoras e apreciadoras do som, mas também como musicistas, roadies, técnicas de áudio, produtoras de shows, zines, mídias digitais, videoclipes e gestoras de gravadoras. O metal extremo tem uma linguagem artística muito peculiar e especial, é uma música extrema em todos os sentidos, porque além de comportar uma sonoridade agressiva, pesada e sombria, apresenta vocais rasgados e guturais muito intensos na abordagem de temas sensíveis e controversos que muitas vezes a sociedade abomina como a morte, o suicídio, o horror, a violência, o satanismo, a bruxaria, o paganismo, dentro outros. Toda essa agressividade e obscuridade ainda é negada às mulheres como parte dos padrões de feminilidade que visam nos manter subordinadas, recatas, frágeis e passivas. Porém, o metal extremo tem sido um espaço também de resistência e subversão para as mulheres que não se encaixam nesses padrões conservadores. As mulheres estão buscando também essa forma extrema e empoderadora de expressão, rompendo com os padrões prescritos para o feminino. Sobre isso, recomendo a leitura de um capítulo que escrevi com Thais Brayner para o livro “Música Extrema: ruídos, imagens e sentidos”, uma grande coletânea que reúne uma série de estudos do Metal onde mostramos essa resistência feminina através das letras construídas por vocalistas de death e black metal de várias partes do mundo. O ebook gratuito está disponível no site da Editora Pimenta Cultural.

HBr: Após o lançamento de Espíritos Rupestres, o que os fãs podem esperar da Miasthenia? Alguma turnê, clipes ou novos projetos em mente?

SH:
Sim, estamos num momento de divulgação desse novo álbum e agendando alguns shows para uma turnê pelo país. No dia 8 de fevereiro abriremos o show do Rotting Christ em São Paulo e estamos ansiosos por mostrar os novos sons no palco. Os interessados em levar o Miasthenia para tocar em sua cidade podem entrar em contato conosco através das redes sociais. Este ano planejamos também lançar um lyric vídeo e inicias novas composições. Algumas novidades podem surgir ainda este ano.

HBr: Esse espaço é seu. Deixe um recado para seus fãs ou para as pessoas no geral. Agradecemos imensamente a gentileza de nos ceder seu tempo para essa entrevista e esperamos ansiosos por shows e mais trabalhos incríveis.

SH: Eu agradeço a você Opus Mortis por essa bela entrevista e pelo apoio e respeito de todos vocês ao nosso trabalho. Vida longa ao Headbangers Brasil! Aos apreciadores de nosso trabalho, fiquem atentos às novidades em nossas páginas no Instragram e Facebook. Esperamos encontrá-los nos próximos shows! Stay Metal!