O Heavy Metal é, sem dúvida, um dos estilos musicais que melhor assimilou influências externas à sua proposta original, ampliando sua profundidade e multiplicando camadas em sua forma de contar histórias, criar universos e se conectar com os sentimentos do público. Apesar de ainda carregar muitos preconceitos vindos de fora, o Metal consolidou-se ao longo dos anos como um dos gêneros mais plurais, refletindo também um rompimento gradual, ainda que lento, com práticas e mentalidades mais conservadoras.
No Brasil, a fusão de elementos externos ao Heavy Metal ocorreu quase em paralelo à popularização do gênero e à formação das primeiras bandas. Entre seus maiores expoentes, Sepultura e Angra tornaram-se referências máximas dessa mistura, evidenciando a riqueza musical e a diversidade cultural de um país de dimensões continentais.
Em entrevista à Folha de São Paulo, Andreas Kisser destacou: “O Sepultura ajudou muito a tirar um pouco desse estereótipo e mostrar que o Heavy Metal é muito mais amplo, o Heavy Metal é o estilo mais popular do mundo (…) O Heavy Metal é inclusivo”.
“Roots”, do Sepultura, e “Holy Land”, do Angra, são dois dos maiores exemplos dessa combinação. Com o passar dos anos, as referências regionais tornaram-se ainda mais amplas, transformando a diversidade do nosso povo em um verdadeiro produto cultural de exportação e consolidando o Metal brasileiro como algo cada vez mais único e autêntico.
De norte a sul do país, bandas das mais diversas vertentes do Metal enriquecem suas composições e temáticas com influências que vão do baião à MPB, da música tradicional gauchesca ao maracatu. Essa abertura para ousar e experimentar tem contribuído para a constante renovação e perpetuação da música pesada.
Assim como fez o Sepultura em “Roots”, que gravou trechos do álbum com uma tribo Xavante do Mato Grosso, buscando inspiração nas tradições e rituais indígenas para criar sua sonoridade, a banda brasiliense Arandu Arakuaa vai ainda mais longe. Toda a sua obra se inspira nas cosmovisões e lutas dos povos indígenas, contribuindo para a divulgação e valorização de suas manifestações culturais. Suas músicas são cantadas nos idiomas indígenas Tupi Antigo, Xerente e Xavante, e suas composições incorporam ao Metal elementos do baião, da catira, da cantiga de roda, da vaquejada, entre outros.
Também influenciada pela cultura indígena e, mais que isso, reconhecida como expoente na preservação da floresta e da cultura amazônica por meio de suas letras e musicalidade, a banda tocantinense Vocifer incorpora de forma natural elementos de manifestações como a sussa, a catira e o baião em sua obra, fazendo com que sua música transmita sua mensagem de maneira contundente.
Em um de seus lançamentos mais recentes, o videoclipe para a faixa “We Are”, presente em seu segundo álbum, “Jurupary”, a Vocifer contou com a participação dos Tambores do Tocantins, um projeto criado em 1992, que visa contribuir com a valorização e a preservação da cultura musical tradicional do Tocantins, desenvolvendo atividades de pesquisa, conhecimento, estudo, vivência e prática de tais manifestações.
Todas as temáticas da banda são inspiradas por lendas e mitos amazônicos, tendo lançado em sua carreira dois discos conceituais, o primeiro, inspirado em Boiuna, a senhora das águas, personagem central do folclore amazônico, e o mais recente em Jurupari, uma controversa figura da mitologia da região.
Seguindo o viés das vertentes mais melódicas do Metal e suas influências em ritmos nacionais, o próprio Shaman, derivado diretamente do Angra, direcionou sua música a uma estética própria, mas também incorporou elementos da tradição musical brasileira em sua obra. A partir daí, diversas outras bandas de Power e Prog Metal do país passaram a integrar essas influências como parte quase intrínseca de suas criações.
A Age of Artemis, uma das bandas mais tradicionais do Power Metal nacional, é um exemplo de como a influência da música brasileira foi gerando uma metamorfose em sua obra. Embora sua personalidade seja bastante clara desde seu álbum de estreia, com o passar do tempo, cada vez mais as influências da música de nosso país se tornaram presentes em sua obra, até mesmo de maneira mais evidente, quando a banda fez suas próprias releituras para clássicos da nossa música como “Planeta Água” e “Sangue Latino”.
O ápice dessa fusão se deu em seu lançamento mais recente, o álbum “Overcoming 10 Years”, onde a banda fez releituras de seu álbum de estreia com arranjos totalmente novos. O conceito deste álbum não foi apenas desligar as guitarras, mas trazer novas versões de músicas que fizeram parte da história da banda, além de explorar essa riqueza cultural de maneira mais evidente.
No Nordeste, bandas como Papangu e Raízes Perdidas se destacam como verdadeiros expoentes da fusão entre a música tradicional nordestina com o Rock e Heavy Metal.
Formado em 2012 em João Pessoa, na Paraíba, o Papangu apresenta um estilo eclético, fortemente influenciado pela música e cultura do Nordeste, mesclando gêneros regionais, como forró e maracatu, com jazz fusion, black metal e stoner rock. O nome da banda faz referência ao Papangu, personagem do Carnaval de Bezerros, festa tradicional da cidade de Bezerros, em Pernambuco. Com essa combinação única e visceral, a banda tornou-se um dos nomes mais aclamados do Metal nacional, atingindo o ápice de sua carreira com o grandioso álbum “Lampião Rei”, considerado um dos melhores discos de 2024 pela crítica especializada.
Da mesma forma, ainda que de maneira diferente, a proposta artística e conceitual da Raízes Perdidas se revela desde seu nome até o título do álbum de estreia, “O Peso do Batuque”, uma obra que funde o peso do Heavy Metal à riqueza da música tradicional nordestina, incorporando elementos de maracatu, baião e frevo. O trabalho apresenta uma sonoridade única, guiada por influências de nomes como KoRn, Sepultura, Chico Science, Death e Nirvana, enquanto suas letras se firmam como um manifesto de resistência, denunciando desigualdades sociais, combatendo todo tipo de preconceito e celebrando a força da história e da cultura do Nordeste.
Herdeiros diretos dos ritmos tribais introduzidos no Metal brasileiro pelo Sepultura, o Muqueta na Oreia incorporou com maestria a percussão ao peso de sua obra, além de abordar em suas músicas a realidade do povo brasileiro, algo especialmente evidente em seu álbum mais recente, “brasileiros”, que carrega essa marca até mesmo no título. A maneira como a banda expressa sua arte traduz diretamente os sentimentos das ruas, dos guetos e das comunidades marginalizadas, soando como a voz do povo traduzida em música pesada.
Herança da cultura de África, que até hoje molda profundamente a identidade brasileira, bandas como Black Pantera, Marabô e Matakabra, apesar de explorarem sonoridades bastante distintas entre si, compartilham um elemento central em suas obras: a ancestralidade do nosso povo.
“Perpétuo”, faixa-título do álbum mais recente do Black Pantera, explora a relação com a ancestralidade e a resistência cultural negra. A música provoca reflexão sobre a universalidade da luta e da história negra, destacando a importância da Cultura Preta na formação do mundo e as origens compartilhadas por todos a partir do continente africano. A canção exalta a força dos ancestrais como fonte de identidade e resistência, enquanto termos como “afrobetizar” e “aquilombar” sugerem uma reapropriação da cultura e da luta. A obra reforça a ideia de que a conexão com as raízes africanas é fundamental para a afirmação e fortalecimento da identidade negra.
Já em “Candeia”, também presente no mesmo disco, a fusão da musicalidade brasileira e africana se torna ainda mais intensa, mostrando por que o Black Pantera é, provavelmente, a maior, mais relevante e autêntica banda brasileira de Rock da atualidade.
O Marabô, banda reconhecida por exaltar as religiões de matriz africana e os ritmos percussivos e tribais de África em sua música, lançou em 2024 seu EP de estreia, acompanhado do videoclipe da faixa homônima, inspirado em um poderoso Exu. “Marabô” retrata uma jornada espiritual guiada pela força e proteção de Exu Marabô, guardião que simboliza a energia necessária para enfrentar os desafios da vida e atravessar momentos de incerteza. A letra enfatiza que, embora o caminho seja individual e naturalmente difícil, a conexão com o sagrado, especialmente com os Exus, proporciona proteção e resiliência. A menção ao fechamento de corpo reforça a importância da blindagem espiritual contra energias negativas, enquanto a travessia pela mata simboliza a passagem pelo desconhecido, onde a fé e o amparo do guardião são fundamentais para seguir em frente.
No sul do país, mais especificamente no Rio Grande do Sul, a música tradicional gauchesca também exerce influência sobre o Heavy Metal, com a gaita e outros elementos das tradições locais desempenhando papel central na ornamentação dessa fusão. A banda Rage In My Eyes é um dos maiores exemplos disso. A Rage In My Eyes é uma banda de Prog Metal que surgiu em 2002 sob o nome de Scelerata. Ao longo desses 19 anos, a banda construiu uma impressionante trajetória no cenário do Metal nacional e internacional, com quatro álbuns e um EP lançados mundialmente, incluindo o aclamado “The Sniper”, que foi parcialmente gravado na Alemanha no estúdio da lendária banda alemã, Blind Guardian. No atual momento de sua trajetória, a Rage In My Eyes segue dando vida a trabalhos absolutamente relevantes, como também honrando a cultura de seu estado através de elementos da música regionalista embutidos em sua obra.
Mesmo que pudéssemos passar horas citando exemplos de todas as vertentes do Metal brasileiro e as múltiplas possibilidades de fusão com ritmos e culturas regionais, ainda assim correríamos o risco de deixar de fora inúmeros nomes importantes. A diversidade musical do país é imensa, e cada banda contribui de forma única para um panorama artístico rico e plural. Esperamos, entretanto, que os exemplos apresentados sirvam não apenas para exaltar a riqueza cultural brasileira, mas também para mostrar como o Metal pode ser uma ferramenta de expressão, resistência e diálogo social. Que essas histórias inspirem artistas a continuar explorando novas sonoridades, rompendo barreiras estéticas e preconceitos, e reforçando o poder transformador da arte em todas as suas formas.
TEXTO POR LUIS FERNANDO RIBEIRO
