“Voar por suas próprias asas”! A tradução da frase em latim “alis volatis propriis”, presente na capa do álbum “Vera Cruz” (2021), novo lançamento de Edu Falaschi, diz muito a respeito da atual fase do vocalista. O músico decidiu reencontrar a sonoridade das antigas, exploradas nos seus tempos de Angra, Almah e Symbols, bandas que ele fez parte.
Após três anos sem lançar material inédito, desde o EP “The Glory Of The Sacred Truth”, Edu nos entrega este ambicioso trabalho, que reflete em uma grande satisfação pessoal em suas habilidades de composição e, especialmente, técnicas vocais.
Com bastante riqueza sonora, onde podemos encontrar MPB, Power/Prog Metal, música erudita, ritmos étnicos e brasileiros e até flertes com djent e thrash, “Vera Cruz” se mostra mais um ponto alto no trabalho desenvolvido por Falaschi. A co-produção é de Thiago Bianchi (Noturnall).
Agora, comparações com trabalhos anteriores do vocalista, especialmente “Temple Of Shadows”, lançado pelo Angra em 2004, com Falaschi nos vocais, são inevitáveis, claro. Mas posso garantir que reinvenção não é o principal mote deste novo álbum.
Aliás, podemos perceber na verdade uma continuação do trabalho desenvolvido por Edu, nos anos 90 e 2000. Ou seja, não trata-se de “cópia” se é algo que o próprio participou, certo?
Afinal, é o mesmo cara que compôs ‘Spread Your Fire’, ‘Angels and Demons’, ‘Heroes of Sand’, ‘Bleeding Heart’, ‘Wishing Well’, ‘The Course of Nature’. É natural que ao ouvir, vamos encontrar elementos que já foram consagrados anteriormente, e eu não consigo ver motivo de reclamação.
Lembrando que na atual banda de Falaschi, também encontramos a brutal bateria de Aquiles Priester e os lindos teclados de Fabio Laguna, que também participaram da fase de Edu no Angra. Mas Roberto Barros e Diogo Mafra (guitarras) e Raphael Dafras (baixo) completam o time, e conseguem dar um toque diferenciado.
Conceito
“Vera Cruz” é um álbum conceitual, de ficção histórica, que tem conflitos internos e traições como pano de fundo. O conceito foi desenvolvido com a colaboração de Fábio Caldeira (Maestrick). Narrado em 12 faixas, a história se passa em 1482, no período das grandes navegações.
Abaixo um resumo da história:
“Uma criança deixada na porta de um convento desperta a curiosidade de todos devido a uma peculiaridade: uma marca de nascença que, séculos antes, foi mencionada em uma misteriosa profecia sobre a extinção da maléfica Ordem da Cruz de Nero.
É a partir dessa característica que a história de Vera Cruz se desdobra e apresenta Jorge, o portador da marca, que cresceu sob os cuidados da igreja e cheio de dúvidas (…) Prestes a desbravar os mares, Jorge se depara com dilemas sobre sua identidade, missão, amor, amizade e intrigas.
Vera Cruz tem seu ápice em terras brasileiras, com Jorge adulto e integrante da esquadra do mestre da Ordem de Cristo, Pedro Álvares Cabral. (…) Personagens marcantes e que ajudam Jorge a descobrir sua missão estão presentes por toda história.
Irmã Rosa, que resgatou o recém-nascido na porta do convento e foi responsável pela sua criação, Irmã Antonela e Dom Abelardo, que o ajudaram a interpretar seus misteriosos sonhos e visões, Janaína e seu pai, Cacique Piatã , que o acolheu na tribo após uma das tantas tentativas de assassinato provocadas pelo famigerado Homem da Cicatriz, a mando do cruel Bispo Negro, são responsáveis por trazer profundidade e dinamismo à narrativa”.
Uma narrativa profunda, onde as canções contam com ricos elementos sonoros, para que o leitor se sinta dentro da história, e isso é o legal do álbum. Consegue reproduzir de forma completa essa história!
Faixas
A partir de agora abordarei sobre as canções em si. Para iniciar, a introdução “Burden”, que nos resume toda a história, com narrativas, sons de espadas, orquestração e muito mais. Parece que estamos acompanhando a abertura de um longa metragem de batalhas medievais. Detalhe para a bela trilha, que me lembrou inclusive Disney. Perfeito para mergulhar de cabeça no trabalho.
“The Ancestry” é cheia de velocidade, “fritação” nas guitarras, bateria acelerada e teclados que fazem a alegria dos power metaleiros. Destaque para a voz do Edu, marcante com seu tom altíssimo no refrão. Roberto Barros nos entrega o seu grande virtuosismo que deu certo na parceria com Falaschi. Os saudosistas certamente lembrarão os tempos de Symbols, ou a canção “Spread Your Fire”, mas com uma velocidade a mais.
A seguir, “Sea Of Uncertainties”, que seguindo a linha de comparação, tem uma introdução muito “Angels And Demons”. Mas aqui temos elementos mais progressivos, destacando a excelente cozinha da banda, com Raphael Dafras e Aquiles Priester, e elementos modernos, que acompanhamos bastante na fase Almah.
Chegou a hora da balada, aliás, grande especialidade do Alemão Falaschi, que já nos presenteou com emocionantes canções, como “Heroes of Sand”, “Breathe”, “Wishing Well”, “Bleeding Heart” e por aí vai. Em “Skies In YourEyes” a emoção prevalece, com elementos típicos como o violão nas primeiras notas e o coro acompanhando o refrão, que marca em nossas mentes.
“Frol De La Mar”, que é o prelúdio da faixa a seguir, “Crosses”, tem uma introdução bem erudita, com corais e orquestra, que deixa o trabalho mais interessante. E esse momento me fez lembrar um power metal puramente europeu, muito explorado nos anos 90.
Mais power metal, por favor! E atendendo a pedidos, iniciamos a escuta de “Crosses”. Seguindo a linha anterior, a sonoridade power metal continua, explorando o lado old school, que me trouxe bastante nostalgia. Especialmente por lembrar dos tempos de Symbols, Angra ou Almah, no “Fragile Equality” (2007). Bumbo duplo, guitarras melodiosas de Mafra, com ótimos solos, ao lado de Barros, teclados inspiradíssimos de Laguna, backings vocais em coro… tudo está aqui!
Chegou o momento em que o personagem principal encontra solos brasileiros, e essa narrativa é feita em “Land Ahoy”. Nos primeiros segundos, escutamos sonoridades de tribos indígenas, que reforçam a brasilidade. A canção tem uma bela introdução no violão, impossível de não lembrar “The Shadow Hunter”, mas com a sua originalidade, especialmente no refrão. Com 10 minutos de duração, a canção, composta por Falaschi e Roberto Barros, emociona com a riqueza de detalhes, com participação do pianista Tiago Mineiro.
“Fire With Fire” já explora um lado mais progressivo, que inclui musicalidade árabe, resultando em uma inusitada e interessante mistura. Aliada a orquestração e guitarras, a música agrada pelo diferencial em relação ao power que escutamos até aqui. Contudo, tive a impressão que faltou um refrão mais marcante para deixar tudo melhor. Mas nada que tire o brilho do trabalho em si.
Mais uma ótima introdução de violão, com pegada bem Angra, “Mirror of Delusion” tem seu ritmo acelerado, e preste atenção na qualidade das guitarras aqui apresentadas, porque vale a pena! Bater cabeça nos shows com essa canção será uma experiência incrível.
Eu já falei que Edu Falaschi tem uma incrível capacidade de nos emocionar com suas baladas? E “Bonfire Of The Vanitie” reforça o que digo. Aliás, a achei mais emocionante no refrão, com a participação de Tito Falaschi no solo, e do violoncelista Federico Puppi. Edu faz uma entrega vocal intensa e marcante.
No álbum “Motion” (2011), do Almah, vimos que a mistura do Thrash com Power Metal podem ter um resultado bem legal, e é o que acontece em “Face Of The Storm”, com a participação de ninguém menos do que Max Cavalera! Aliada a metralhadora nos pés de Aquiles Priester, em forma de bateria, a canção se torna uma pérola no metal brasileiro, com passagens de ritmos étnicos, que até lembram o Sepultura das antigas. Logo de cara, os berros de Cavalera empolgam, que dueta naturalmente com Falaschi. Sem falar no inspirado solo nas guitarras. Mas faço uma ressalva que, para mim, poderia ter mais participação do Max, pois achei curta hehe.
Fechando o álbum com chave de metal (perdoem o trocadilho), “Rainha do Luar” é cheia de elementos nordestinos, incluindo a sanfona do músico Rafael Meninão e as participações do violoncelista Federico Puppi e do pianista Tiago Mineiro. Para completar, a maravilhosa voz de Elba Ramalho. Forte e ao mesmo tempo doce, seus vibratos transmitem emoção em cada nota. Mais uma vez o metal brasileiro prova que é possível mesclar com outros ritmos e artistas diferenciados, resultando em verdadeiras obras. Aqui também encontramos passagens de “O Lago dos Cisnes”, de Tchaikovski. Genial!
Assim, podemos dizer que “Vera Cruz” é um ponto alto na carreira de Edu Falaschi, que reuniu tudo que o alavancou nos últimos anos. Apesar de não trazer nenhuma inovação de fato, e em primeira audição soar com algo que já ouvimos antes, é muito bem produzido e tem ótimas faixas. Belo trabalho da equipe, que merece reconhecimento.
Quem curte música boa deve ouvir esse trabalho, e deixar as comparações e rivalidades de lado. Afinal, quem ganha somos nós, fãs brasileiros, que podemos desfrutar de um material rico. Ouça mais de uma vez, vale a pena se atentar aos detalhes. Fica a minha recomendação.
Lembrando que a versão regular do álbum contém o livro de vinte páginas, totalmente em português, com capa dura envernizada, o CD completo e um DVD exclusivo para o mercado brasileiro.
Nota: 4,8/5
Tracklist de “Vera Cruz”:
01 – Burden
02 – The Ancestry
03 – Sea Of Uncertainties
04 – Skies In Your Eyes
05 – Frol De La Mar
06 – Crosses
Land Ahoy
08 – Fire With Fire
09 – Mirror Of Delusion
10 – Bonfire Of The Vanities
11 – Face Of The Storm – feat. Max Cavalera
12 – Rainha do Luar – feat. Elba Ramalho
Ano de Lançamento: 2021
Gravadora: MS Metal Records