“Crise? Que crise?”

Após o término do festival Hollywood Rock, que parodiando o slogan do produto foi um sucesso, principalmente na noite paulista com Marillion e Bon Jovi, a expectativa por novas atrações era justa, pois no período de um ano diversos nomes de destaque da música pesada tinham se apresentado em nossos palcos. Mas a coisa não funcionou bem assim e um novo nome internacional só veio mesmo em maio e por uma pura e única oportunidade que a promotora do evento soube agarrar e logo mais vamos explicar bem essa estória.

Mas, o que aconteceu para os shows internacionais darem essa brecada repentina de mais de quatro meses? Na verdade não foram os shows e sim todo o país praticamente e para entender isso tudo vamos falar um pouco sobre política econômica.  Quando o presidente eleito Fernando Collor de Mello assumiu seu mandato ele tinha como uma das suas metas frear a inflação no Brasil, que na época estava por volta de 30% ao mês – melhor eu repetir para os mais jovens entenderem bem. É isso mesmo, 30% AO MÊS.

No dia seguinte a sua posse, em 16 de março de 1990, foi comunicado pelo presidente e sua equipe econômica a implantação do Plano Collor. Para quem não sabe, Plano Collor é o nome dado ao conjunto de reformas econômicas e medidas para estabilização da inflação. A teoria do plano econômico foi desenvolvida pelo economista Antônio Kandir e efetivamente implementada pela ministra da economia Zélia Cardoso de Mello e sua equipe e amplamente divulgados em jornais como O Estado de São Paulo.

Imediatamente houve uma nova mudança cambial no Brasil, com substituição da moeda corrente, o cruzado novo, pelo cruzeiro à razão de NCz$ 1,00 = Cr$ 1,00. Alem disso foram adotadas as seguintes medidas econômicas: 80% de todos os depósitos do overnight (uma prática financeira que se utilizava da inflação em grande escala para especular ou tentar amenizar os prejuízos causados por ela) das contas correntes ou das cadernetas de poupança que excedessem a NCz$ 50 mil (cruzados novos) foram congelados por 18 meses; foram também congelados preços e salários; eliminação de vários tipos de incentivos fiscais e aumento de preços dos serviços públicos. Definitivamente não foi um plano muito popular e para quem não sabe já vou logo dizendo, não deu certo.

Vocês não imaginam, pelo menos quem não viveu aquela época, as incertezas que nós passamos, e claro, que isso atingiu em cheio quem estava planejando trazer alguma atração para ser paga em dolar. Dessa forma foi necessário um tempo de adaptação para a retomada de alguns negócios – o brasileiro já estava calejado com essas bombas econômicas, mas dessa vez a coisa tinha extrapolado.

Antes das datas do Napalm Death ser confirmadas para o mês de maio com três shows aqui na capital paulista algumas boas novas estavam acontecendo. Um novo ponto heavy tinha sido inaugurado, o Dynamo no bairro da Consolação aqui em Sampa, que seria uma nova opção para as bandas se apresentarem. Por falar nisso aparentemente a enxurrada de shows gringos motivou os bangers a comparecerem em um maior número aos nossos eventos caseiros conforme eu pude confirmar nos shows do Sepultura/RxDxP em fevereiro com o Projeto SP completamente LOTADO. Também foi ótima a presença dos fãs da boa música pesada nos shows do Viper/Golpe de Estado em 17 de março – logo depois do ‘presente do governo’ – e em 7 de abril para conferir as apresentações de Korzus/MX/Vodu, tudo isso no já citado Projeto SP no bairro da Barra Funda.

Os shows do Napalm Death foram organizados a toque de caixa graças ao empenho do Max do Sepultura, que queria o Napalm se apresentando ao lado de sua banda e do Eric de Haas através da Dynamo. Eles conseguiram encaixar os shows para durante um curto período de folga da banda que estava gravando seu novo álbum. Basicamente os músicos iam passar menos de quatro dias no Brasil e fazer três apresentações, o que seria muito puxado. Paralelamente a isso tudo o selo Rock Brigade colocava a disposição dos headbangers brazucas uma edição nacional do ótimo LP “From Enslavement to Obliteration”.

A divulgação teve o mesmo (falta de) tempo que a produção teve, ou seja, quase nenhum, mas mesmo assim vinhetas para as rádios rock foram veiculadas e até algumas promoções, o que surpreendentemente deu um ótimo resultado, pois conseguiu levar ao Dama Xoc durante os dias 10, 11 e 12 de maio um público total estimado em 3 mil pessoas. Um sintoma claro, já comentado a pouco, que os headbangers paulistas estavam muito mais presentes aos shows do que antes.

Para se ter uma ideia da correria a banda chegou pela manhã do dia do primeiro show. O Napalm estava em Tampa, Flórida gravando seu novo trabalho e estava programada uma folga de quatro dias antes de voltarem para a Inglaterra. Para dar tudo certo durante a folga eles viriam ao Brasil, se apresentariam e voltariam correndo para os EUA e daí sim voltar para casa. E foi o que aconteceu e quando chegaram já trouxeram novidades. O Napalm que desembarcou era um quinteto formado por Micki Harris (bateria), Shane Embury (baixo), Mitchel Harris e Jesse Pintaro (guitarras) e o monstro dos berros Barney Greenway nos vocais, sem dúvidas uma das suas line-ups mais mortíferas.

O show do dia 10 ocorreu em meio a muitos problemas com o som e uma banda extremamente cansada por causa da viagem, segundo relatos de quem esteve presente. O diferencial foi a inclusão do RxDxP a pedido da própria banda, que se apresentou por apenas uns 30 minutos somente nessa noite. Também foi o dia com menor público pagante, mas vamos dar um desconto por ser uma quinta feira. No dia 11 já um pouco mais descansados o Napalm ofereceu uma performance muito melhor segundo relatos e o público só não foi mais significativo do que o do dia anterior por causa do dilúvio que caiu na cidade durante a tarde.

Meu plano inicial era ir ao show da sexta, pois no do sábado o Nalpam seria a primeira banda a se apresentar. Os caras tinham o voo marcado para as 23 hrs do próprio sábado, ou seja, as chances de um ser um set mais curto era quase certa e por isso optei pela sexta. Mas certamente já aconteceu com vocês algumas vezes na vida, de fazer algum plano e dar tudo errado, naquela oportunidade foi uma das minhas vezes. Tudo seria perfeito. Assistiria a banda na sexta, voltaria para casa e no sábado de manhã iria dar um pulo do Dynamo para pegar uns rabiscos, pois o Napalm e Sepultura estariam presentes por algum tempo no local concedendo autógrafos. Mas, lembra-se do dilúvio que eu citei a pouco? Então, rapaz, a cidade ficou debaixo d’água por horas devido ao temporal. Parou tudo, rios transbordaram, transito caótico e claro, chance zero de chegar no bairro de Pinheiros a tempo. Menos mal que eu ia comprar o ingresso na porta. O jeito mesmo foi ir no sábado e o mais chato foi que acabei não indo ao Dynamo conhecer os caras do Napalm.

Como estava previsto pro Napalm Death entrar no palco as 18hrs, só reforçando que nesse dia eles tocariam antes do Sepultura, eu fui bem cedo para a porta do Dama Xoc comprar minha entrada e encarar um bela fila. De longe foi o dia mais concorrido com mais de mil pagantes até por se tratar de um sábado. Minha principal lembrança desse dia é o sentimento de desespero meu e de muitos presentes, pois o tempo ia passando e nada dos gringos entrarem no palco. Finalmente com uma hora de atraso ao som de “Unchallenged Hate” o Napalm Death transformou o Dama Xoc em uma área de guerra, mas bem delimitada. Tinha o pessoal espremido na frente do palco para tentar alguns ‘moshes’ – que foram bem moderados e dessa vez não atrapalharam ao show felizmente – e o pessoal que aproveitou o espaço mais para o fundo da casa pra ‘organizar’ umas rodas. Para quem não se encaixava em nenhuma dessas opções, como EU, tinha espaço de sobra nas laterais para poder curtir o show tranquilamente. A apresentação em si foi muito legal, afinal de contas existiam muito poucas bandas no mundo naquela época que em pouco mais de 55 minutos de show tocariam 23 pedradas sem perder o pique.

O Napalm se despediu rapidamente, pois era o tempo de correr para o hotel fechar a conta e entrar no avião. Mas eu e o resto do público ainda tínhamos o Sepultura para ver e eles também estavam em um momento especial. Muitas pessoas presentes foram exclusivamente para ver os mineiros, que também estavam de malas prontas para embarcar para uma tour pela Europa e direto emendar na produção do novo álbum – que seria simplesmente o matador “Arise”. E quem foi para vê-los não se arrependeu, pois eu posso afirmar que dentre as inúmeras vezes que assisti Max e companhia, esse show em especial foi o mais descontraído, com interpretações um pouco diferentes de seus clássicos e uma boa quantidade de covers no set. Terminado o evento era hora de voltar para casa bem mais cedo que o normal – que maravilha de horário – e o principal, sem chuva. Ah, uma boa notícia para quem não esteve em nenhum dos três dias, mas gostaria de dar uma olhada como foi um dos shows. Uma gravação ‘bucaneira’ está a disposição no You Tube, e é claro que o link está logo ali no final dessa matéria.

No final das contas mesmo com os problemas que o tal plano econômico causou, as bandas estrangeiras estavam começando a dar as caras por aqui outra vez. Mas não pense que não houve respingos. Por causa de toda a conjuntura o dinheiro obviamente estava mais curto e eu tive que escolher em qual show eu poderia ir entre os três que estavam agendados para o mês de agosto.

Mas esse assunto nós vamos tratar na próxima semana, pois as lembranças dos shows mais importantes da década de 90 estão no HB “…PRA FICAR!!!

Napalm Death Brazilian Tour ’90:

São Paulo, 10, 11 e 12 de maio.

Setlist:

  1. Unchallenged Hate
  2. Life?
  3. The Kill
  4. Scum
  5. If the Truth Be Known
  6. Control
  7. Walls of Confinement
  8. Social Sterility
  9. Suffer the Children
  10. Dead
  11. Human Garbage
  12. Practice What You Preach
  13. Mentally Murdered
  14. From Enslavement to Obliteration
  15. Extremity Retained
  16. Success?
  17. Rise Above
  18. Instinct of Survival
  19. Siege of Power
  20. You Suffer
  21. Deceiver

Bis:

  1. The Missing Link
  2. Retreat to Nowhere

(Créditos das fotos: Paulo Márcio)