Dizer que o show do alemão Udo Dirkschneider e sua banda em Fortaleza foi um dos mais aguardados da história do metal cearense jamais pode ser considerado uma mera falácia ou manobra publicitária. Foi mesmo. Literalmente. O show da U.D.O. foi anunciado no início de 2020 e, por causa da pandemia e problemas de saúde, passou por sucessivos adiamentos. Então, não foi como o show do IRON MAIDEN (que aguardamos ansiosamente, mas as suspeitas só se confirmaram alguns meses antes do show), nem como o primeiro da CANNIBAL CORPSE (que acreditávamos jamais poder ver na capital cearense, também foi confirmado meses antes) ou do METALLICA (que é um sonho ainda não realizado, nem há quaisquer indícios de que possa acontecer num futuro breve). A espera foi real. Ingressos comprados ainda no mundo antigo, pré-pandemia, quase perderam a cor. Pouco antes da chegada do baixinho alemão e sua trupe, mais um obstáculo teve de ser transposto. O Armazém, casa de show que tem abrigado a grande maioria dos shows de metal internacionais no Ceará, tinha sido alugado para outro evento. A casa pulou fora do barco. Embora já tenha sido reservada para o UDO, na ausência de uma confirmação definitiva, aceitou passar a noite para outro show. Daí foi uma correria para a produtora das datas de Fortaleza e Recife encontrar outro local onde o show dos alemães pudesse ser realizado de forma aceitável para fãs, músicos e para os próprios produtores. Daí começa mais uma polémica. O templo mais sagrado da música e arte cearense, o centenário Theatro José de Alencar, ícone supremo da arte cearense, estava, felizmente, disponível para 8 de outubro. Suas restrições, no entanto, foram objeto de muita controvérsia nos dias que antecederam o show. Show de metal em um teatro? Pode isso? Isso dá certo? Vão tirar as cadeiras?
O local, com sua estrutura magnífica, partes em alvenaria, partes em ferro decorado, ladeado por um jardim projetado por Burle Marx, chegou a ser chamado de “inadequado” em redes sociais e grupos de mensagens. Uma pecha que jamais tinha lhe cabido desde que “O Dote” de Arthur de Azevedo fora lá encenado pela primeira vez (em 2010). E não era nem o primeiro show de metal que assistimos naquele ambiente. Shows do festival Rock Cordel haviam acontecido nos jardins. Shows do Forcaos tinham acontecido no anexo. Pouco antes da pandemia, Edu Falaschi já tomara o palco principal (em show acústico, é verdade). Agora, alguns falavam mal deste templo simplesmente pelo fato de que não poderiam tomar cerveja ou fazer moshpit (e nem stage dive – ainda falaremos, e muito, sobre isso). Ora, quem vai de bikini à missa? Ou de paletó dar um mergulho na praia? O ambiente tem suas restrições, mas aqueles que reclamaram esquecem de que o mais importante não sofria restrição alguma. A música. A música era absolutamente livre. E a música viria de uma das grandes bandas cearenses, a STEEL FOX, chamada para representar no José de Alencar o metal alencarino, e de um dos ícones do Heavy Metal mundial. Esqueceram-se disto.
A alternativa, não ter o show, ou seja, não ter a música, restringi-la completamente, era absolutamente inaceitável. Esqueceram-se disto.
Enfim, o show aconteceu. E vamos contar aqui tUDO o que vimos.
Pontualmente às 8 da noite, ouvimos “No Class” tocando no sistema de som do TJA. Aí entram, sob muitos gritos entusiasmados, os cinco componentes da banda U.D.O., entre eles, o dono do acrônimo e Peter Baltes, dois dos fundadores do ACCEPT, acompanhados do guitarrista russo Andrey Smirnov, do baterista Sven Dirkschneider (o filho do homem) e do guitarrista Dee Dammers. E o alemão mais cearense da Vestfália começa o show com “Prophecy”, uma boa mostra do seu mais recente álbum, “Game Over”. Os gritos com seu nome se repetem por todo o teatro, na área central, nas bancadas superiores. E continuam intercalados entre cada uma das próximas músicas, “Holy Invaders” e “Go Back to Hell”, que o público também cantou junto com a banda, a bela “Never Cross My Way”.
A voz de Udo está perfeita. E além dele, ressaltamos que há mais outros quatro microfones. Todos, todos os músicos da banda fazem backing vocais. É um coro que se junta ao do público. Depois de “24/7”, com seu rifão, e de “Independence Day”, uma muito veloz começa. Sven quase toca como se fosse Power metal. É “Breaker”, o primeiro dos muito esperados sucessos do Accept da noite, que emocionou a galera. Eu Acho que vi alguém lá dos seus 50 anos chorando. Ainda sobre o público, havia muita gente de 40, 50, até perto dos 60, além dos jovens que comumente vemos nos shows.
Smirnov fica só no palco despejando alguns riffs que ficam cada vez mais rápidos. O público acompanha os riffs com palmas é heys e recebe a bonita “Rose in the Desert”, que foi seguida de “Kids and Guns”, mais uma do disco novo, lançado em 2001, quase uma premonição sobre o que aconteceria no mundo a partir de 24 de fevereiro deste ano.
Os dois guitarristas têm excelência técnica, apesar da juventude e a pretensa pose de galãs. Não é à toa que estão tocando com uma grande parte do Accept original. O baixo de Baltes é muito, muito alto. E isso é muito, muito bom. E ele está muito feliz, sorridente e brincalhão o tempo inteiro, o show todo.
“Like a Beast” vem em seguida, mudando levemente a ordem dos setlists dos shows mais recentes, mas sem muitas surpresas. A nova ordem também mistura bem músicas mais leves e mais rápidas.
Agora é o outro guitarrista, Dammers, que assume o protagonismo no palco. E só duas notas foram necessárias para que todos começassem o ooooo. Pulamos felizes feito crianças. Ou como pinto no munturo (se você é cearense, sabe o que é). Interessante que Udo só pronuncia o título da música, “Princess of the Dawn”, depois de quase dez minutos, no finalzinho (Quando repete várias vezes substituindo o ooooooo). Não era necessário. Todas as vezes ele apontava pra gente e dizíamos em seu lugar.
“Blind Eyes” baixa um pouco a bola. Mas é compreensível. Esse seria o destino de qualquer música que ele resolvesse tocar após aquela apoteose. E sobre “The Bogeyman”, quem é capaz de dizer que uma canção como essa não é a essência do Heavy Metal? É a partezinha amarela da nata do Heavy Metal.
“Vocês estão prontos para cantar comigo?”, pergunta o velhinho. “A próxima começa assim”. E a cançoneta haidi, haído, haida bota “Fast as a Shark” no ar, incendiando novamente o José de Alencar. E que o Iphan entenda muito bem o que estou dizendo. Aqui também acontece um momento polêmico no show, que também incendiaria as redes sociais nos dias seguintes. Traremos mais detalhes e nossa opinião ao final deste texto.
“Vocês ainda querem cantar?”, pergunta UDO. E O karaokê continua com “Metal Never Dies” (principalmente no refrão), mas é ela que aparentemente mata o show.
Só que todo mundo sabe que tem o bis…
Ninguém sai do lugar. E os gritos de Udo se transformam em, bem, como fiz em minha resenha do Rock in Rio (link no final do parágrafo), vou poupá-los da parte mais explícita. “Ei, B…, vai tomar no cu”. E o público, boa parte dele, pelo menos, repete o coro várias vezes até voltar ao “olê, olê, olá, Udo, Udo, Udo”.
https://headbangersbr.com/rir-por-daniel-tavares/
O retorno é a confissão de um senhor de 70 anos, “I Give as Good as I Get”, seguida de “Man and Machine” cheia de efeitos de som e luz, flertando com metal industrial, mas sem perder o foco no metal tradicional. Sven continua como gosta, atacando com força os bumbos e brincando com as baquetas, às vezes as girando no ar entre uma baquetada e outra em “Animal House”, como em outras canções anteriormente.
A gente sabe que o show está acabando. Udo faz um duelo voz/guitarra com Dammers. Se havia alguma dúvida que a voz rouca e esganiçada do baixinho ainda está perfeita, não há mais dúvida nenhuma. E ele até parece perder o duelo, deixando Dammers dar início à introdução que, mais uma vez, põe fogo no Theatro José de Alencar. É nada mesmo que “Balls to the Wall”, o maior clássico, o clássico absoluto do Accept. E aqui não haverá tentativa de transformar em palavras a alegria de presenciar aquele momento.
O “Chute” de Peter Baltes
Durante “Fast as a Shark”, um fã conseguiu subir no palco e ficou agitando lá de cima por alguns segundos. Ele não foi o primeiro a fazer isto. Mais cedo, um roadie tinha rapidamente impedido que outro fã abraçasse os músicos. O bote do roadie “Juma Marruá” foi tão rápido que realmente cheguei a temer que algum dos dois tivesse se machucado feio. Foi um verdadeiro ataque de uma onça contra um gato. Sim. As palavras não foram usadas por acaso.
Nesta segunda ocasião, por brincadeira, estrelismo, ou maldade mesmo, Peter Baltes foi mais rápido que o Juma e empurrou o fã com o pé. Este, imediatamente se desequilibrou e caiu junto aos outros fãs que se aglomeravam em frente ao palco. O movimento dividiu opiniões. Em minha opinião pessoal, foi apenas uma brincadeira de Baltes. Sorrindo ele estava antes do episódio, sorrindo ele continuou depois. Não quero dizer que estou certo, até porque não tive a oportunidade de conversar com o baixista depois do show, mas, analisando o que está em minha memória e, auxiliado pelos vídeos que pipocaram em redes sociais, mas não me baseando completamente neles, só posso acreditar que foi uma brincadeira. E talvez essa brincadeira tenha evitado algo pior (eu disse isso hoje ao fã) se fosse o “Juma” a tirar o fã do palco. “Never Cross My Way”.
Pra quem acha que foi um desrespeito de um gringo a um brasileiro, convenhamos, de quem era o espaço naquele momento? Dos gringos ou dos brasileiros? Ora, nós fomos ao Theatro José de Alencar para ver os brasileiros da Steel Fox, os quatro alemães e o russo da U.D.O. Não mais. Ninguém mais. Nem mesmo o “Juma”, que tem que ficar na surdina, que só tem que aparecer pra abotoar uma correia, reconectar um cabo ou, infelizmente, tirar algum intruso do palco. Há shows em que é aceitável subir ao palco, fazer stage dive, até mesmo pegar o microfone e tocar com os músicos, mas, naquele momento, naquele ambiente, naquele show, ISSO NÃO ERA PERMITIDO. Sim, a caixa alta também não foi usada por acaso. Então, se Baltes fez uma brincadeira infantil, uma brincadeira pesada ou uma agressão, isso foi iniciado pela atitude do fã. Não quer ser expulso de um lugar onde você não deve estar? Não vá. Simples assim. Qualquer consequência só tem uma causa: a invasão do palco. Ou vocês esperam que a banda peça por favor para o fã descer, interrompa a música, interrompa o show, deixe algumas outras centenas de fãs (que conhecem o seu lugar) frustradas? Peter Baltes usou os pés pra empurrar (ou chutar, ou dar um bicUDO, como saiu em uma reportagem) porque, empunhando o seu baixo, era o que lhe restava fazer. Invadir o palco sem que isso seja permitido pode ser comparado a beber e dirigir. Qualquer consequência pode ser assumida por aquele que errou. Palco é pra ser respeitado. Depois, não adianta espernear. Nem chutar.
Considerações Finais
Para quem torceu contra o show, reclamou de ser num teatro, apenas perdeu um excelente show, com qualidade técnica ímpar, bem-produzido em termos de som e luz em um local que serviu muito bem ao propósito. É claro, uma cerveja (ou até mesmo uma água) faz muita falta. A produção facilitou ao permitir que as pessoas saíssem para “reabastecer” fora do teatro, mas, nada como tomar uma cervejinha ali mesmo, diante da banda. Mas, repetimos, diante da alternativa do show ser cancelado, isso é café pequeno. O ambiente, esplendoroso, também poderia ter uma climatização melhor. Havia condicionamento de ar, mas, eu estava suando em bicas, mas, isso nunca impediu um show de acontecer. E, ao invés de ficar reclamando do sofá, devemos procurar os canais oficiais da SECULT e criticar formalmente.
E sobre as cadeiras? Todo mundo acabou assistindo o show em pé. As cadeiras não atrapalharam nada.
O que se mostrou no show do UDO foi que, sim, nós em Fortaleza temos uma nova alternativa viável para nossos shows de metal. Não resolve o problema de falta de casas, mas os alencarinos podem contar também com o José de Alencar.
Agradecimentos:
Sonoro Assessoria e Comunicação, Blackout e Alcides Burn, pela atenção e credenciamento.
Chris Machado, pelas lindas imagens que ilustram esta matéria. Confira mais ao final deste texto (clique para ampliar).
Setlist
1. Prophecy
2. Holy Invaders
3. Go Back to Hell
4. Never Cross My Way
5. 24/7
6. Independence Day
7. Breaker
8. Rose in the Desert
9. Kids and Guns
10. Like a Beast
11. Princess of the Dawn
12. Blind Eyes
13. The Bogeyman
14. Fast as a Shark
15. Metal Never Dies
16. I Give as Good as I Get
17. Man and Machine
18. Animal House
19. Balls to the Wall
Steel Fox