Há quem não goste de receber flores nesse dia, eu gosto. Há quem não goste de ser homenageada nesta data, eu gosto. Há quem não acha certo a comercialização dessa data, esse é um ponto a se pensar. Nossa luta por direitos iguais é dura, árdua e diária, por isso, e somente por isso, um descanso ou afago na alma faz bem.
Eu entendo muito bem a reação que nós, mulheres, temos quando alguém compartilha um cartão de rede social, elogiando a nossa posição, dizendo o quanto já foi feito… Eu sei que da raiva, que essa pessoa não faz ideia do ponto de partida, muito menos do ponto de chegada. Mas essa pessoa é só mais uma que tenta se encaixar, e às vezes acaba trocando pés pelas mãos. Claro que, como tudo na vida, não é unânime. Óbvio que tem as pessoas que sabem da luta e fazem pouco, as que apoiam, as que são empáticas sobre… Mas mulher, por um dia, se permita descansar. Se permita dividir o peso, ou tirar das suas costas sim. Por um dia, aceite uma flor, aceite um elogio, ignore a pessoa que faz pouco das suas batalhas (até porque quem faz isso deve ser ignorado solenemente mesmo). E eu não digo isso pra que as coisas fiquem como estão e a sociedade hipócrita sorria feliz pelos seus feitos e méritos, apenas pra que você descanse dessa batalha por um dia.
Toda mulher é um universo inteiro, por isso, dentro das batalhas comuns (salários iguais, carga de trabalho igual…), existem as individuais, onde encontramos problemas raciais, sociais, etários e tantos outros. Eu não lutei a sua luta, mulher, mas eu sou solidária a ela, porque só a gente sabe o peso do nosso universo, e o quanto e o quê ele nos custa.
É muito comum vermos comentários como “ser mulher num ambiente masculino como esse é muito difícil”. Gente, que ambiente que não é masculino? Chiquinha Gonzaga sofreu horrores por tocar maxixe, porque era música popular. A música sempre tratou a mulher como tema, e não como compositora. Ela sempre foi o motivo e não a ação. A música (como todas as artes) nos colocou em caixas: virgens inatingíveis, musas e deusas do olimpo, depois portadora da vida, depois vagabundas deliciosas. Em qual dessas você já foi colocada? Em qual dessas você quis ficar?
Mas hoje eu não vim aqui para falar de lamentos, ou do que já tivemos que enfrentar no decorrer da história da humanidade, cada uma de nós sabemos ponto a ponto cada batalha. Hoje eu estou aqui para te homenagear, para te lembrar de como você é maravilhosa e o quanto você é vitoriosa. Você pode até achar que ainda não chegou onde quer, mas com certeza já saiu de onde começou. E se ainda não teve coragem pra isso, abre teus olhos lindos e te enxerga da forma que eu te enxergo: uma mulher incrível!
Aqui, nós vamos ver os relatos das gatas Aletea, baixista do Miasthenia; DJ Evil Line; Tais Vidal, pesquisadora, jornalista, escritora e Headbanger; Nata, vocalista da banda Manger Cadavre?… Quem sabe no próximo ano não é você e a sua história que estarão aqui? Afinal, nossa felicidade e os pontos onde passamos por ela, são as coisas que realmente importam, que construíram quem somos hoje.
Feliz Dia da Mulher!
Aletea – Miasthenia
Comecei a tocar baixo por acaso. Um grupo de amigos se reuniu em minha casa e surgiu a ideia de montar uma banda. Eu, quieta no meu canto, nem cogitava a possibilidade de me tornar uma baixista, quando alguém apontou para mim e colocou um baixo nas minhas mãos: Vai ser você! Eu nunca havia tocado e no primeiro momento não topei, mas fui levada para o estúdio mesmo assim. Quando toquei o primeiro riff soube que havia me apaixonado pelo instrumento. Era uma banda de Thrash Metal. Eu era a única mulher em um meio totalmente masculino. Quando íamos para o estúdio, eu era sempre a figura feminina, mas nesse primeiro momento no underground não percebi preconceitos nem tive a impressão de ter sido excluída de nenhuma forma. Foi uma experiência divertida e dali para frente o baixo iria se tornar parte da minha vida e as aventuras, as vivências, as desventuras começariam.
Quem frequenta o meio underground sabe bem que a presença feminina nos palcos ainda é muito pequena na maioria dos shows. Lembro-me de um ocorrido quando toquei em um festival em Brasília. Todas as bandas eram predominantemente masculinas e a banda que eu tocava na época era de mulheres. Estávamos no palco e eu afinando o baixo, um cara se intrometeu mexendo no afinador querendo me ensinar a usar, como se eu não soubesse. Para mim foi tão surreal que não tive reação. Uma das meninas da banda se virou para ele e falou: “Meu amigo, ela é musicista, sabe afinar o próprio instrumento!” Fico pensando: isso com certeza não acontece com bandas masculinas, imagina uma mulher subindo ao palco querendo ajudar o cara! Acho que essa foi a primeira vez que senti o machismo dentro do underground na pele e comecei a perceber que realmente ser mulher nesse meio é lutar duplamente, triplamente, é ter que se afirmar e se impor o tempo todo para que nossa identidade seja aceita. Várias outras situações vieram antes ou depois dessa. Na minha primeira gravação fui muito humilhada por ainda não saber quase nada sobre entrar em um estúdio. Eu penso hoje, com mais maturidade, que aquela atitude foi absurdamente machista, o cara não aceitava minha presença ali.
No metal extremo, lido com preconceito, um conservadorismo em relação à minha formação. Sou bacharel em música e meu instrumento é clássico. Já ouvi comentários negativos sobre isso, como se eu fosse limitada, como se eu fosse incapaz de tocar outro instrumento ou fazer parte do extremo! Olha, vocês não poderiam estar mais enganados!
Ainda bem que atualmente o movimento de mulheres dentro do metal é crescente. Uma apoiando a outra, divulgando, incentivando! Com certeza ainda precisamos romper os preconceitos, a misoginia, o machismo. Ainda somos alvo de olhares e críticas negativas, seja no modo como nos vestimos, tocamos ou nos “comportamos”. Atualmente acredito que conquistei um certo respeito dentro do underground, ainda assim, estou sempre percebendo o que está a minha volta e não aceito mais certos comentários ou atitudes que coloquem em dúvida a minha capacidade!
Sabemos compor, sabemos tocar, afinar um instrumento, subir num palco, sabemos berrar! Se quiserem ajudar, caminhem juntos e cresçam junto com a gente!
Dj EvilLine
É impossível falar do Dia Internacional das Mulheres sem abordar misoginia, sexismo, luta de classes e tantos outros temas atuais, ainda em 2024.
O século XX foi marcado por tragédias e manifestações, mas a data só foi oficializada pela Organização das Nações Unidas na década de 70, mais especificamente em 1975. Em 8 de março de 1917, as russas reivindicavam direitos trabalhistas, eleitorais e melhora nas condições de trabalho. Protestavam contra a primeira guerra mundial e contra o regime czarista. Mais de um século depois, permanecemos lutando por igualdade de salários, por mais mulheres na política, na ciência, na tecnologia, nas artes, na música e em tantos outros setores ainda considerados “territórios masculinos“.
E no Rock? Como andam as coisas para nós mulheres que, direta ou indiretamente, consumimos e/ou produzimos entretenimento? Como a questão de gênero permeia os diferentes e múltiplos subgêneros? Como andam os mercados nacional e internacional? Como somos afetadas no dia a dia, na rotina de trabalho?
O “70000 Tons of Metal Cruise“, de fevereiro desse ano, contou com a participação de duas bandas brasileiras, exclusivamente femininas. A Crypta (Death Metal) e a Nervosa (Thrash Metal). Os festivais nacionais também têm adotado esse novo panorama. Já era hora dos produtores se renderem ao talento incontestável das mulheres, que têm trabalhado árdua e honrosamente para ascender aos palcos mais disputados.
O icônico David Bowie, em entrevista à MTV, questionou o motivo de artistas pretos e pretas talentosíssimos da época -1983 – não terem tido visibilidade por intermédio do canal, o que fez com que Mark Goodman passasse da posição de entrevistador a entrevistado, diante da inquietude, militância e brilhantismo de Bowie. Ainda é tempo de lutarmos para que talento não tenha raça ou gênero, para que mulheres brilhem nos palcos cada vez mais. É tempo de assistirmos microfones em mãos pretas, para que a periferia se levante, para que os holofotes atinjam o subúrbio, o “underground”, e iluminem os rostos brasileiros miscegenados que não têm traços europeus.
No ambiente virtual, Rita Lee Jones de Carvalho ainda divide o topo do Google, para a busca da palavra “roqueira“, com Avril Lavigne e Pitty, quer agradem o gosto popular ou não. Seu falecimento, em 8 de maio de 2023, foi considerado uma das maiores perdas artísticas, já que ela é considerada a maior roqueira do Brasil, de todos os tempos. Seu legado permanece em nossos corações. Seguimos Ovelhas Negras, cheias de gratidão, pela construção de décadas de trabalho, e pela irreverência que tanto nos ensinou.
Em tempos nos quais a concorrência pop tatua o orifício anal para chamar a atenção da mídia e Dado Dolabella se intitula veterano, o que sobra de nós mulheres diante do machismo escondido debaixo de quase todo colete do roqueiro motociclista, dos memes do emo depressivo, do punk drogado, da pirigótica, do jeito queer do Glam, do metaleiro adorador do diabo, do surfista/skatista maconheiro, do headbanger de tatuagem de caveira e tantas outras caricaturas depreciativas? Sobra uma coragem sobre-humana de ir além das dificuldades, de fazer o talento prevalecer, de ser respeitada pelo profissionalismo e potencial artístico, de ser notada sem vender a alma a um empresário ou o corpo a um produtor, de escolher o figurino que compõe bem a personagem sem sexualizar a musicista, de ser irreverente na composição e nem sempre “isentona”, mesmo sabendo que, para finalidades comerciais, você precisa ser politicamente correta e muitas vezes permanecer “em cima do muro”. É temer que Hooligans, grupos neonazistas e afins se encantem por seu trabalho e o adotem como trilha sonora ou hino, com risco de cancelamento virtual e requintes de crueldade. É ver colegas de trabalho enciumadas com seu sucesso e crescimento, já que o topo da pirâmide é estreitíssimo. É trabalhar arduamente, virar noites, estudar, se aperfeiçoar, investir em equipamentos caros, ser pontual, profissional, mal remunerada, e, ao final de um trabalho bem sucedido, ouvir que você “enfeitou” o projeto, jogando todo seu talento e dedicação no ralo, em detrimento do apelo estético e sexappeal, como se você fosse paga para servir de objeto sexual.
Se raspa a cabeça é taxada de “skinhead”. Se deixa crescer o moicano, é “anarquista ou comunista vermelha”. Se não bebe enquanto trabalha, levantam rumores de gravidez, não de profissionalismo. Se adota um perfil “low profile” nas redes sociais, dizem que já está decadente. Se não comprou o selo azul, você não é ninguém! Se não posta foto sensual (para ganhar seguidores) é porque o marido não deixa.
O esmalte, só pode ser preto, roxo e vermelho. Batom, idem. Se toca Madona, é criticada! “Sabe nada de música! Madona nem Rock é!” dizem eles, em suas calças cargo verde militar. “Girls just wanna have fun, da Cindy Lauper?!” É taboo. Muito arriscado! “I want to break free, imortalizado na voz do Freddie Mercury?!” Melhor não tocar! Assim como o colorido lindo dos figurinos da Nina Hagen, da Cindy, do Bowie… Também não é bem vindo. Só preto, cinza, chumbo, camuflagem, couro e suplex. Ahhhh, suplex pode! Aquela calça que te embala a vácuo e mostra todos os contornos do seu corpo pode sim.
Nos pés cansados, “Salto alto, por obséquio!”, adverte o figurinista. “Ei, garçom! Preciso de água, por gentileza!” Pois ninguém lembra de servir artista. O artista é que está ali “para servir”. E segue a lista imensa de curiosidades sobre a nossa rotina. Umas pitorescas, muitas outras macabras.
Termino citando Rita Lee: “Sexo Frágil não foge à luta!”, esperando que possamos reunir forças, desentalar os gritos, retocar o batom (se assim desejarmos) e construir uma nova realidade mais gentil e humana para cada uma de nós.
Um abraço caloroso e respeitoso a cada roqueira que já foi abordada por um “alecrim dourado” que quis saber se ela realmente conhece e ouve a banda da t-shirt que ela estava usando.
Um carinho especial às que trabalham com Rock, ressaltando que o palco também é, cada vez mais, nosso lugar de fala. À frente ou atrás das cortinas, vocês são todas fundamentais. Tenham resiliência e sororidade. Contem comigo!
Em tempo: essa é, sim, uma data de todas as mulheres. Das transgênero, inclusive! Mulheres que devem ser respeitadas em todas as fases de sua transição!
Nata – Manger Cadavre?
Atuo no cenário underground desde 2003, quando organizei meu primeiro show. Pouco tempo depois (2005), montei o Soco na Fuça Produções ao lado do meu melhor amigo, Marcelo, que posteriormente fundou o Manger Cadavre?, banda que eu sou vocalista desde 2011.
A cena no interior sempre foi uma comunidade, um espaço que reproduz todas as coisas boas e ruins da sociedade, pois a bolha não é isenta do macro, mas sempre tive mais motivos positivos que negativos para permanecer no underground. No aspecto sobre ser mulher na cena, a questão de assédio e de certos indivíduos que não aceitam ouvir um ‘não’, que de fãs, se tornam haters é uma constante, mas após muito tempo de terapia, aprendi a abaixar o volume de gente abusiva e me blindar desse tipo de coisa.
Do contrário, já teria abandonado produção e banda. Há também o desdém da galera ‘dona da cena’, que nesse aspecto eu considero uma questão de classe mesmo. Hoje, mais perto dos 40 anos, que dos 30, eu acho animal ver a quantidade de mulheres, especialmente de meninas nos shows.
Na minha época de adolescente era eu e mais umas cinco amigas na cidade. Hoje, rodando o Brasil, é inegável que houve uma mudança, ainda que tenham poucas bandas com mulheres na formação na atualidade (cerca de 700 em território nacional em atividade, apesar de expressivo, é um número irrisório se comparado ao número de bandas estritamente masculinas). A tendência é a renovação!
Tais Vidal – Socióloga e Professora
Foto: Arquivo Pessoal
Sou Taís Vidal e tenho 43 anos, vivo a cena metal de Salvador desde meus 17 e a identidade Headbanger tem me servido de bússola desde então.
Escrevi a pesquisa intitulada “O True Contra O Poser“, em 2013, sobre o circuito underground da produção musical e de ethos que aporta nesta cidade desde a década de 1980. Não fui a primeira nem a única. Deena Weinstein (dá pra conferir a fala da moça no documentário A Headbanger’s Journey) foi uma das primeiras pesquisadoras que apareceu em minhas buscas bibliográficas. O clássico, O Movimento Punk na Cidade, foi escrito pela antropóloga Janice Caiafa, aí no Rio dos anos 80. E na época em que eu já fazia meu próprio trabalho, pude ler o que a antropóloga Abda Medeiros escreveu sobre a cena metal de Fortaleza.
Certamente há muito mais referências de pesquisadoras sobre o universo metálico surgidas nos últimos dez anos, o que indica que a paridade se torna cada vez mais Real! Apesar desse trunfo, gostaria de usar algumas linhas aqui para dividir algumas observações a respeito de um comparativo que faço entre a quantidade de bandas que têm mulheres em sua formação em Salvador e em outras cidades.
Já morei em Brasília e em Aracajú, na capital do país a quantidade de bandas (e a virada de chave que estas bandas representam para o cenário nacional) lideradas por mulheres é simplesmente FODA! Vejo guitarristas, baixistas, bateristas, vocalistas, multiinstrumentistas surgirem nos discos de bandas em SP, Rio, no Sul do país e em outras cidades do Norte e do Nordeste que têm o mesmo porte demográfico de Salvador. Não me resta dúvida que é provincianismo daqui termos poucas presenças de Soteropolitanas nos palcos do underground. Nos bastidores somos muitas, mas o que me pergunto é por que não no front? Não fui fisgada pela moda da representatividade “pra sair bem na foto”, então não é coisa de “inclusão” da Mulher. O metal se conquista, não se concede. O Eternal Sacrifice e o In Infernal War são duas bandas do Black Metal daqui que contam ou já contaram com mulheres em sua formação. Guardo apenas elas duas em minha memória. Isso contrasta com o último censo sobre a população feminina de Salvador. Aqui temos a maior população feminina do país (https://www.correio24horas.com.br/minha-bahia/salvador-sai-do-4-para-o-1-lugar-entre-as-capitaiscommaiorpercentualdemulheresnopais1023#:~:text=O%20n%C3%BAmero%20total%20de%20moradores,8%25%20(menos%20111.461 ) e também somos a capital mais preta e parda!! (https://generoesexualidade.ffch.ufba.br/wpcontent/uploads/2019/04/apresenta_camara_abr19_semvideo_compressed.pdf).
Isso significa que o grupo social do país que está na condição de maior vulnerabilidade social (mulheres pretas e pardas) está concentrado aqui! Por isso usar o espaço para a reflexão sobre o dia 8 de março sobre este fato. Quando se é jovem, aprender a tocar um instrumento, formar uma banda, peitar a produção de um disco, pra quem tá mega ocupado em tentar sobreviver é beeem mais difícil!!! Depois que fica adulta, se combinada ao fenômeno da maternidade então!!!
Sonhava em tocar bateria numa banda com minhas amigas, duvido que fui a única! Mas cadê tempo, cadê grana, se o foco era o mundo frio e prático da empregabilidade. A arte é um luxo reservado aos ociosos, restam aos miseráveis a receita de Lou Andreas Salomé (Se você quer uma vida, aprenda… a roubá-la). Já tinha mais de 30 quando comprei uma bateria eletrônica, hoje ela fica aqui pegando salitre enquanto eu torço para minha pequena Aurora (fã incondicional de Joan Jett) assumir as baquetas. Nem sequer aprendi a tocar, fiz aulas com uma professora, mas não praticava em casa, acho que fui enferrujando junto, mas a faísca: eu mantenho acesa!
Amanda Basso – Headbangers Brasil
Meu primeiro CLT foi como promotora de uma marca de ovos de Páscoa, numa rede de hipermercados. Eu fui contratada para arrumar os produtos da marca em prateleiras e os ovos em parreiras (que são aquelas estruturas onde os ovos ficam pendurados). Não conhecia nada daquilo, mas estava ali para aprender. E aprendi. Me saí tão bem, que a marca, que não era líder, teve uma boa venda na loja onde eu estava.
Eu entendia que as pessoas, principalmente as mais idosas, não compravam meu produto por não conhecer. Então apresentei esse chocolate tão gostoso pra elas. Pegava os chocolates da quebra (que são aqueles tirados dos pontos de vendas e devolvidos à fábrica, porque estavam quebrados ou ameaçados), abria e servia para os clientes. Era uma prática legal? Não, mas eu não sabia!
Quando contei isso para minha supervisora, ela quase teve um ataque, mas para resolver isso, ela me trouxe uma roupa de demonstradora, já que eu me saí bem com isso, nada mudaria, além do fato de que eu teria que fazer tudo o que eu já fazia com uma roupa que marcava cada curva do meu corpo. Dava pra ver o contorno do pulmão. Sério, pra quê isso? Além de longas orelhas de coelho, com um saiote de tecido mais leve, com um pompom atrás, no lugar no rabinho do coelho.
Eu tinha 18 anos e achava que eu não poderia recusar nada em um trabalho. “O importante era levar o dinheiro pra casa, e pagar o telefone“. Isso não saía da minha cabeça. A satisfação de ajudar a pagar as contas!
As crianças eram fofas: queriam ver a ajudante do coelhinho e todos os brinquedos que ela mostrava nos ovinhos. Os pais, babões que queriam ver o rabo do coelhinho; alguns se atreveram a mostrar pra criança, dizendo “olha que bonitinho, filhinha!“, como se eu não estivesse ali, como se fosse permitido invadir o espaço do meu corpo e tocar nele. As mães, me olhavam como se eu gostasse dessa situação, me olhavam como se eu estivesse ali para ameaçar o bem estar do seu passeio.
Eu fui completamente sexualizada sem saber o motivo… Eu poderia continuar fazendo tudo isso de calça jeans e camiseta. As jogadoras de vôlei reclamam disso até hoje: por que nossos uniformes devem ser assim, justos e extremamente curtos? Por que as mulheres não conseguem ser vistas pelo seu talento? Por que o apelo sexual deve estar sempre de mãos dadas? Fica o questionamento!
Essa foi uma história. Ainda tiveram as várias vezes em que meu trabalho foi desacreditado pela minha idade, por eu ser muito nova; o dia em que eu subi num palco e o engenheiro de som do evento disse que só aumentaria meu microfone se eu saísse com ele… Coisas que mulheres passam, por viverem numa sociedade que a vende como um pedaço de carne suculenta.
Dentro da cena não vivi muitas situações lastimáveis, além dos pagamentos oferecidos, mas porque sempre toquei ao lado do meu marido, e homem respeita homem, fato!
Tudo isso é revoltante, causa repulsa? Sim! Mas eu volto a falar o que falei no começo: mulher, por um dia, se permita descansar, se permita chorar, gritar, gargalhar, permita-se não carregar o peso do mundo nas costas. Devolva a Terra para Atlas carregar. Descanse, receba suas flores, seus bombons, depois ranja os dentes, afie suas unhas, limpe os caninos, e volte pra selvageria que vivemos, para, ponto-a-ponto, mudarmos a realidade de quem quer que seja.
Texto por: Amanda Basso e convidadas.