Quem está habituado a ver Steve Harris correndo pelos milhares de palcos gigantescos mundo afora, deve ter estranhado demais vê-lo assim: cru, como tudo começou. É como se deparar com o começo da história.
Se você, assim como eu, já imaginou como deveria ser assistir ao Iron Maiden naqueles pubs londrinos, esta quinta-feira foi reveladora. O Fabrique se vestiu com as cores do Leão Britânico e te levou de volta a 1977… 1978… 1979… eles realmente souberam mexer nessa máquina do tempo.
Imaginem um galpão num lado meio obscuro de São Paulo, assim é o Fabrique Clube, assim era o Ruskin Arms, em Londres. Foi um choque de realidade muito grande – Steve Harris mais relaxado, sem tantas responsabilidades, mais acessível, mais humano. “O Chefe”, o pai de tudo, um mito dentro do Olimpo que criamos, dentro do “Maidenverso”, tocando num lugar que com certeza sua banda de garagem tocaria, chão grudento com cerveja seca e calor condensado, pedestais oxidados, sem roadies para entregar um violão quando Richard Taylor precisasse. Muitas vezes fui capaz de enxergar, entre um solo ou outro, garotos com suas guitarras de papelão fazendo shows incríveis, ou até alguns efeitos pirotécnicos saídos da chaleira de David Lights.
No filme “Em Algum Lugar no Passado”, de 1980 (obra adaptada original de 1975, do grande escritor Richard Matheson – Criador de sucessos como Eu Sou a Lenda e Amor Além da Vida), Richard Collier volta no tempo se auto hipnotizando, usando estímulos visuais que o convencesse da época desejada, como roupas, decoração, móveis… British Lion nos convenceu bem da época, já que Tony Moore, único tecladista oficial da história do Iron Maiden (presente na banda entre 1976 e 1977), com seu trabalho solo foi o responsável por abrir aquela noite.
Infelizmente, devido ao dilúvio paulistano, não foi possível que eu chegasse à casa para o começo do show de Tony, assistindo somente às três últimas músicas, mesmo ele sendo adiado para às 19:30. O público parecia bem satisfeito e curtiram o som dançante do músico. Um clima de festa tomava conta do Fabrique, com Tony a caráter, com um blazer de paetê que causava inveja a qualquer socialite, ou cover de Elton John. E confesso que causou em mim também.
A pontualidade britânica é famosa, não seria diferente aqui, já que quem conhece o chefe Steve Harris sabe o quanto ele é rigoroso com o cronograma. Às 21:10, com o palco pronto, uma intro grandiosa começa. O público se aglomera próximo à grade do palco e, ao som de “This Is My God”, Richard Taylor, David Hawkins, Graeme Leslie, Simon Dawson e ele, o “Boss” Steve Harris entram em cena, elevando a temperatura da casa a níveis estratosféricos. Nunca achei o som do British Lion atraente para o meu gosto musical, mas a banda funciona muito bem ao vivo. Ganha mais peso, a voz de Richard fica menos robótica e muito melodiosa, bem agradável. Suas interpretações são viscerais e ele realmente sente o que canta. Muito interpretativo. Leslie e Hawkins são a simpatia em forma de gente, a cada oportunidade que tinham, mandavam beijos e faziam coração com as mãos. Harris mais solto, como sempre cantando cada palavra de suas músicas e no alto de seus 68 anos, me pergunto como ele tem tanta energia (e memória para decorar músicas do Maiden e do Lion). Simon fica mais escondido, mas seu punch não passa despercebido: que pegada, que força!
“Judas” é emendada e o público responde com alegria.
Em momento nenhum desse evento, devo ressaltar que a banda foi desprezada em detrimento de Steve Harris. Não foi pedido uma música da Donzela sequer. Steve Harris não foi ovacionado antes da hora. Diferente de 2018, na turnê que passou por São Paulo, no Cine Jóia, onde a plateia, insistentemente pedia por Running Free, Clairvoyant… esse desrespeito não foi repetido.
Voltando ao setlist, “Father Lucifer” entra quase que no último acorde de “Judas”. Interessante notar que apenas Richard fala com as pessoas, mesmo sabendo que boa parte da audiência (para não dizer 100%) estava presente para prestigiar o chefe de perto. Taylor fala, conta histórias, memórias de como Steve foi importante em sua trajetória na música e de como seus parceiros de banda o ajudaram. O que é muito emocionante, tendo em vista que “Father Lucifer” é uma letra introspectiva, que trata da mudança de perspectiva da vida. Bastante profunda.
“Bible Black” começa como num transe. Um riff de guitarra infinito que te faz entrar no clima da música, que mostra o “egoísmo” de fazer o melhor para si e buscar seu próprio caminho. Uma letra bastante filosófica partindo de dois pontos: 1) na linha luciferiana, a busca pela melhora do “self” não é um erro, viver para si para depois ajudar o próximo é encorajado com a premissa de “como ajudar o próximo, se eu mesmo estou mal?” 2) segundo Crowley, todo homem/mulher é sua própria estrela, então deve-se trabalhar para seu próprio brilho, para depois brilhar em par. Essas duas linhas filosóficas contrariam o cristianismo tradicional que ensina a amar o próximo, e a Deus, mas não menciona o “amar a si”. Se concordamos ou não, é uma conversa para outra hora, trouxe esses conceitos para que você, blood brother, entenda o que Steve quis dizer em certos momentos da música. O fogo interno, a vontade de seguir em frente… tratam sempre dessa busca pelo autoconhecimento e crescimento próprio.
“2000 Years”, música que já faz parte do terceiro disco da banda, que ainda não tem data para lançamento, deixou o público quieto, mas dançando. Um refrão forte, com grande potencial de coro, fez o Fabrique pular, mesmo que sem cantar. “The Burning” veio em seguida. Essa já era mais conhecida por todos e foi cantada a plenos pulmões. E uma experiência incrível de vivenciar, foi ver pessoas cantando e chorando, como se percebessem suas vidas nessas letras, tamanha a identificação. Claro que tudo isso somado ao fato de Steve Harris estar a 3 palmos de distância…
“Legend” começa de forma mais discreta, com um dedilhado de Graeme e a voz de Richard. Simon entra e a emoção continua. Uma música sobre a velocidade com que o tempo passa e de como lendas históricas se tornam “apenas” histórias. “These Are The Hands”, presente no álbum de estréia, de 2012, também fala sobre autoconhecimento e sobre a responsabilidade das próprias decisões. Num mundo onde as “culpas” são cada vez mais terceirizadas, Richard canta que as escolhas que fazemos são parte de quem somos, logo não podemos passar para outras mãos.
A cada conversa, a cada troca de música, bandeiras eram agitadas na grade e o nome da banda, urrado como se não houvesse amanhã. Os Lions agradeceram com a emoção de quem teve o trabalho reconhecido. Já Steve Harris sorria com a satisfação de quem ensinou certo aos seus filhos.
“A World Without Heaven” também levantou o público, que parecia não perceber que o show chegava a sua metade. A banda não poupou repertório. E para quem imaginou que o show seria curto devido à dupla jornada de Steve Harris com o Iron Maiden na mesma semana, se enganou profundamente. “Spit Fire”, uma das queridinhas dos fãs, entrou com Taylor dizendo que havia contado a história de seu pai a Steve Harris e ambos escreveram essa música, logo, ela era muito importante e tocante para ele. Todos cantaram com força e alegria. Era uma celebração!
“Land Of The Perfect People” começa com Richard no violão. Um violão que ninguém entrega para ele. O próprio vocalista o pega e depois o acomoda no pedestal. Como um ser humano normal. Provavelmente como o seu amigo que tem uma banda faz, e que você não faria a menor ideia de que Steve Harris e seus Lions fariam. Uma música irônica que fala de pessoas que “não erram”. Ela deixou a audiência morna, até chegar um coro que se repetiu eternamente “run run runaway…” e todos voltaram a participar. E um adendo para essa música: ela termina com uma galopada do Chefe, que nesse momento levantou o baixo na típica pose da capa do famoso pôster da editora Somtres. Os fãs/colecionadores mais velhos sabem bem do que eu estou falando.
Diferente do que Steve Harris faz com o Iron Maiden, não foi feita uma parada para depois termos um Bis, foram 17 pauladas na orelha, uma atrás da outra, com intervalos onde Richard conversava com a platéia, que respondia atenta e interagia bem. Um dos primeiros singles do British Lion começa: “The Chosen Ones”, emendada com outra velha conhecida “Us Against The World”. Eu olhei para trás e diversas vezes vi fãs chorando. Não dá para saber se a música os tocava tanto a esse ponto, ou a emoção de ver um ídolo tão perto falou mais alto. Harris estava muito perto, sorridente… agindo com a mesma força em que age num palco gigante com a Donzela há tantos anos. A energia deste senhor de 68 anos não acaba. É incrível!
O show começa a caminhar para o seu final e depois de um pequeno agradecimento, Taylor explica o que foi fazer essa turnê com a banda, e como é incrível a recepção que eles tiveram na América do Sul. E que aqui no Brasil, já se sentia em casa. Que seria normal esse tratamento para Steve Harris (que nesse momento olhou muito sem graça para o vocalista), mas que tanto Simon, quanto David, Graeme e ele se sentiram muito acolhidos e amados, e que isso era maravilhoso de se sentir. Leslie e Hawkins mandavam beijos e piscadas a cada parada. Faziam corações e sorriam muito… que simpatia. Depois desse breve discurso, “Wasteland” (também parte do terceiro disco a ser lançado), “Lightning”, single lançado em 2019, muito bem aceito pela crítica (e mais ainda pelos fãs) e “Last Chance”. Todas emendadas. Mais um agradecimento e Taylor apresenta a banda. Todos devidamente homenageados e com seus nomes gritados pelos fãs, mas enfim, chegou a hora de todos mostrarem seu amor pelo Patrão. Quando Taylor fala “e no baixo, Steve Harris”, sinceramente, pensei que o Fabrique iria cair. Todos gritavam, agitavam a bandeira do West Ham, batiam palmas, os pés no chão… foi quase um apocalipse! E Steve, com seu jeito tímido, acenou para todos os seus súditos, como se olhasse nos olhos de cada um. Depois dessa catarse, o show se encerra com “Eyes Of The Young”. E novamente a banda se reúne na frente do palco, dessa vez com Simon Dawson também (mal sabíamos que esse nome seria tão mais familiar). Todos reverenciam o público em agradecimento, palhetas e baquetas são entregues, enquanto Steve abre uma mochilinha e tira algumas munhequeiras para distribuir. Ao final do montinho que ele pegou, retira as dele e entrega também.
E o que eu posso falar desse show, senhoras e senhores? Ele me mudou. Eu conhecia bem o trabalho da banda, mas sempre me mostrei insatisfeita principalmente com os vocais. E muita gente com quem já conversei também torce o nariz para isso. Acredito que por estarem acostumados com Bruce Dickinson, não sei dizer… fato é que a banda soa muito mais pesada e orgânica ao vivo. O vocal de Richard Taylor que tanto me incomodava no disco, ao vivo cresce e perde todo aquele resquício de voz presa e robótica presente nas mixagens. A interpretação dele para cada música é hipnótica, com algumas doses de dancinhas parecidas com Ian Curtis, do Joy Division.
Quando saímos da casa, percebemos que o público não se dispersava, esperando ver Steve Harris uma última vez, antes da grandiosidade de seus dois próximos shows com o Maiden, no Allianz Parque. E eis que depois de aproximadamente uma hora do final do show, a banda começa a sair em direção à van que os levariam de volta ao hotel. E lá está ele, Steve Harris, com sua mochilinha nas mãos, conversando com todo mundo, praticando sua humanidade na frente de seus fãs. A van se vai. Só aí que a rua do Fabrique começa a ficar vazia, com alguns poucos fãs esperando seus carros chegarem ou conversando em bares sobre o que tinha acabado de acontecer.
Foi uma noite mágica… e nós nem sabíamos o que ainda estava por vir!
Setlist British Lion:
This Is My God
Judas
Father Lucifer
Bible Black
2000 Years
The Burning
Legend
These Are the Hands
A World Without Heaven
Spit Fire
Land of the Perfect People
The Chosen Ones
Us Against the World
Wasteland
Lightning
Last Chance
Eyes of the Young
Texto por: Amanda Basso
Fotos por: One Photography Media
Agradecimentos especiais à Equipe Midiorama pelo credenciamento e ao Eddie The Head FC por ceder os vídeos.