“Podendo sorrir outra vez”
Outra semana se passou e já é hora de continuarmos falando sobre os grandes eventos que marcaram a década de 90. Como vocês se recordam, fizemos um grande apanhado sobre a visita do Napalm Death em meio a uma grande crise econômica que nós enfrentávamos. Mas mesmo com todos os problemas que o plano econômico causou, as bandas estrangeiras estavam começando a ter datas confirmadas. E depois de dois meses sem absolutamente nada simplesmente três nomes de diferentes vertentes do universo da música pesada se apresentariam aqui em São Paulo, todos dentro do período de aproximadamente 20 dias. E por causa de toda a conjuntura o dinheiro obviamente estava mais curto e eu tive que escolher em qual – ou quais – show eu poderia ir entre os três que estavam agendados para o mês de agosto.
Uma coisa era certa, de uma forma ou de outra, o show da eterna voz do Deep Purple, mr. Ian Gillan, eu não perderia por nada. As datas estavam confirmadas para os dias 3 e 4 de agosto no Projeto SP, local pra lá de conhecido de vocês que estão acompanhando os nossos especiais, que se localizava no bairro da Barra Funda. Para a abertura estava escalado Wander Taffo, ex-guitarrista do Radio Taxi, e sua nova banda que levava seu nome.
Gillan havia deixado o Deep Purple após o álbum ao vivo “Nobody’s Perfect” de 1988 para ter mais liberdade criativa, mas todo mundo sabia que o problema tinha outro nome e respondia por Blackmore. Picuinhas a parte Gillan chegava em grande estilo ao Brasil, com um novo disco debaixo do braço, o LP “Naked Thunder”, que tinha saído do forno em 16 de julho – já vou adiantando que sobre esse disco vamos falar bastante no ‘Sugestão do Dia’ aqui no HB muito em breve, fique de olho – e o cantor tinha planos de até gravar um clipe aqui em nossa terrinha.
Obviamente por se tratar de um ex-Deep Puple, Gillan chamou muita atenção da mídia em geral e recebeu destaque de diversos veículos. Além das tradicionais coletivas o músico concedeu exclusivas para jornais e programas de rádio, e foi entrevistado para a TV por Kid Vinil, que naquele tempo era o apresentador do programa Som Pop da TV Cultura-SP. Ele também foi capa da edição número 51 da revista Rock Brigade e destaque no Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo em sua edição de 3 de agosto de 1990. Mesmo sendo oficialmente inaugurada em 20 de outubro de 1990, a MTV Brasil já estava produzindo conteúdo quando Gillan se apresentou em Sampa e gravou um pequeno material que foi ao ar meses depois em uma edição do ‘Drops MTV’ (um programa de curtíssima duração que era apresentado de hora em hora com notícias, trechos de entrevistas etc…).
Gillan desembarcou no Brasil ainda no final de julho vindo de várias datas em países como Dinamarca, Georgia, Russia e Armênia entre outros tantos e logo de cara a má noticia, que o show carioca havia sido cancelado por causa do incêndio no Canecão, local onde aconteceria o espetáculo. Restava então aproveitar o tempo disponível e gravar o clipe para a faixa “No Good Luck”. A proposta básica do vídeo era: Gillan passear por uma favela (comunidade é uma definição do nosso tempo atual do politicamente correto, em 1990 era favela mesmo), assistir algumas pessoas dançando lambada, pois em 1990 lambada era como mato, tinha para todo lado e depois ficar cercado de um monte de garotas de biquines ‘padrão RJ’. O que não deve ter sido muito fácil, pois no dia da gravação da cena da praia o tempo estava nublado, ventava e fazia por volta de 16 graus. Realmente o nome da música foi profético em tudo no que se refere a passagem de Gillan pelo Rio e isso foi explorado por diversas publicações ao relatar os problemas do britânico em terras fluminenses. O cantor chegou em São Paulo no dia 2 se hospedando no Hilton Hotel e retomando toda rotina de coletivas, exclusivas e a preparação para as duas apresentações na capital paulista.
Como eu disse anteriormente os shows aqui em Sampa estavam marcados para os dias 3 e 4 de agosto no ‘Projeto SP’ e minha opção foi pelo sábado, dia 4. O ingresso me custou quatro LPs de minha coleção, pois ou eu me desfazia deles ou não eu iria ao show e essa foi a forma de levantar os Cr$ 1.000,00 (nessa época já tínhamos voltado para o cruzeiro), que era o preço da pista.
Durante o sempre interminável tempo de espera na fila aproveitei para bater um papo com um pessoal que tinha estado presente na noite anterior e indagar sobre o set apresentado. Eu só iria comprar o novo disco do Gillan, o já citado “Naked Thunder”, meses depois e queria saber quantas das novas músicas ele iria apresentar. Claro que como de costume tudo atrasou e já era noite quando entrei no Projeto SP, que praticamente lotou e até por causa dessa procura, um show extra estava confirmado para segunda dia 6.
Eu ainda não tinha assistido há um show da banda do Taffo e fiquei surpreso tamanha categoria dos músicos. Os irmãos Busic, os alicerces da banda, eram conhecidos de longa data desde os tempos de Platina, mas o Wander que eu mal conhecia, demonstrava uma técnica sem igual. Foi um ótimo show e tempos depois, talvez um ou dois anos, sinceramente não me lembro, encontrei o Wander no Black Jack Bar e conversei com ele por um longo tempo a respeito desse dia em especial. Boas lembranças essas.
Enquanto desmontava o equipamento do Taffo o público foi se agitando, pois logo Gillan invadiria o palco. Sobre a banda que veio com o cantor era uma unanimidade na plateia que o guitarrista Steve Morris era muito bom, que o vocalista de apoio Dave Lloyd era desnecessário e que era uma pena que o batera Simon Phillips não tenha vindo – segundo o próprio Gillan, o famoso músico tinha dado uma ‘inflacionada’ absurda no seu pedido de cachê para vir a America do Sul.
Ao som de uma das novas músicas “Gut Reaction”, Gillan e sua banda quase derrubam o local e a audiência foi à loucura. Talvez para os mais novos seja até difícil de entender a reação das pessoas naquela época, mas posso falar por mim e eu cantei todas as músicas que eu conhecia como se fosse a última vez, principalmente os clássicos do Purple. Ouvir o rife de “Smoke on the Water” podendo ver o lendário cantor logo ali, eu estava na lateral direita encostado no palco, parecia irreal. Gillan era um sorriso só. Uma única chiadeira foi que perto do final os pedidos pela clássica “Highway Star” se tornaram insistentes demais, mas não adiantou. E é claro que tinha que ter uns descontentes reclamando das várias covers do set em detrimento do pedido principal do público, que acabou ficando de fora. Mas foi um baita show, acredite. O vozeirão de Gillan estava lá para conduzir a todos com maestria e eu fui embora para casa cantarolando “Trouble” – uma das covers – com resto de voz que ainda tinha me restado.
Além do show extra da segunda-feira, Gillan ainda se apresentaria em Curitiba no dia 7 de agosto fechando sua tour brasileira e rumou para a Argentina. Mas ele voltaria mais rápido do que qualquer um poderia imaginar, em 1992, mas esse assunto fica para outro dia.
O mês de agosto de 1990 ainda prometia e pouco mais de dez dias depois eu estaria de volta ao Projeto SP para ver uma banda especialista em crossover, o DxRxI. Mas esse assunto nós vamos tratar na próxima semana, pois as lembranças dos shows mais importantes da década de 90 estão no HB “…PRA FICAR!!!”
Ian Gillan Brazilian Tour ’90:
– São Paulo: 3, 4 e 6 de agosto.
– Curitiba: 7 de agosto.
Setlist básico das apresentações:
- Gut Reaction
- Black Night
- Living for the City
- Strange Kind of Woman
- Ain’t That Lovin’ You Baby
- Nothing to Lose
- Ain’t No More Cane on the Brazos
- I Thought No
- Knocking at Your Back Door
- Let It Grow
- Sweet Lolita
- Trouble
- New Orleans
- Lucille
- No Good Luck
- Smoke on the Water
(Créditos das fotos: Paulo Márcio)