Um. Primeiro show. Antes de chegar ao Complexo Armazém o que parecia era que iríamos ao primeiro show de nossas vidas. Pelo menos alguns de nós, que nos mantivemos isolados tanto quanto possível nestes dois anos difíceis de pandemia. E, de fato, era mesmo o primeiro show de nossas vidas, da segunda parte de nossas vidas: WARBIFF, GAROTOS PODRES e RATOS DE PORÃO, na mistura que você preferir (como fiz ali no título). Porém, ao chegar nas cercanias do Dragão do Mar e ver novamente tantas caras amigas, a família headbanger do Ceará, a sensação misturou-se a uma impressão de que mal fazia dois dias que todos nós nos tínhamos visto.
Como foi bom poder reencontrar com o parceiro de tantos shows, Rubens Rodrigues, com o cara por trás da Underground Produções, o também parceiro Fabrício Moreira, além de tantos amigos como Daniel Bifão (Warbiff), os vizinhos Jheyson e sua esposa, Tales Groo (Darkside), Daniel Boyadjian (Obskure), Gustavo Queiroz (Detector de Metal), Maciel Souza (Jazigo), Mailson Buson (Crashkill), Vinícius “Vertigem” (Lixorgânico/Vertigem Discos) e tantos outros que a memória, já falhando, não vai me permitir mencionar. É o metal de volta para onde nunca saiu (talvez tenha se acalmado, ficado em casa). É a vida voltando ao normal. Ao novo normal, pelo menos.
E o primeiro grande show de Thrash Metal (não o primeiro, ressalte-se) do mundo novo em Fortaleza foi da WARBIFF. A banda, formada por Daniel Biff na guitarra e vocal, Augusto no baixo e Rômulo na bateria despejou um set curto, mas eficiente, de pedradas nos headbangers que começavam a encher a casa.
Com letras antenadas com a realidade, sobre a violência em Fortaleza e a sujeira na política, por exemplo, a escolha do trio thrasheiro para abrir um show que ainda teria Garotos Podres e Ratos de Porão mostrou-se bastante acertada, especialmente quando em “Pigs Parliament“, Parlamento de Porcos, Bifão puxa um “PNC do Bolsonaro”, e complementa, “quem votou nele tem sangue nas mãos”. Musicalmente falando, a faixa, que dá nome ao mais recente álbum também entrega tudo o que o banger quer: velocidade (mas com aquela paradinha esperta), belo solo e som porrada. Relembrando antigos tempos, quando se chamava MERCENARIES, a banda também incluiu a faixa epônima no set. E não deixou de agradecer ao Fabrício, relembrando que é o primeiro grande evento no que Bifão chamou de pós-pandemia, mas não deixou de pontuar: “Ainda não acabou. Galera tem que continuar se cuidando”, mas refletiu: “depois de 2 anos. Tem que se abraçar. Isso e bom pra caralho”. Ainda rolou uma cover do TAURUS, “Mundo em Alerta“. Mais adequado, impossível. A banda foi ovacionada ainda no meio de “Blessed for What?“, a derradeira do show. Nada menos que o merecido.
Setlist
Welcome to the Warbiff
Searching for Light
Mercenaries
Pigs Parliament
War in the Name of God
Eternal Violence
Mundo em Alerta (Taurus)
Blessed for What?
Garotos Podres
Enfim, chega a hora Vinícius, do selo Vertigem Discos e da banda Lixorganico anunciar uma das duas atrações principais. Era hora de Deedy (guitarra), Uel (baixo) e Tony Karpa (bateria) subirem ao palco, acompanhando o peralta senhor Mao, a personificação do garoto podre (do alto dos seus 59 anos, completados exatamente naquele dia).
E a revolução não foi televisionada, mas a anarquia começou a capella, com Mao e o público cantando “Garoto Podre“. Era verdade. Não era só os Garotos Podres na área (com um garoto de 59 anos), mas era novamente um show de punk/metal, com músicas rápidas e violentas como “Oi, tudo bem“? Rápida como eram rápidas uma, duas, três rodas violentas que se formaram no meio do público.
O show continua com a debochada “Vomitaram no Trem” e a engraçadinha “Nasci para Ser Selvagem“, prima irmã daquela outra, a do Steppenwolf, sabe? Mao Contou que até 1988 eles tinham que submeter as músicas à censura. E a próxima, “Johnny“, foi uma das canções da banda que não passaram no crivo dos censores.
Mao notou alguém na plateia mostrando uma camisa de 100 anos do PCB e fez questão de mencionar. “São 100 anos não só do PCB. Mas 100 anos de lita da classe operária”, disse. E somou que a próxima tinha muito a ver com isso. Era “Rock de Subúrbio“. Mas ainda havia espaço para mais ativismo na noite. E como havia. Sobre “Avante Camarada“, Mao lembrou que foi hino da resistência à ditadura salazarista em Portugal.
A única canção nova da noite foi, na verdade, não tão nova, mas uma cover da italiana LOS FASTIDIOS, “Antifa Hooligan“. Mao ainda lembrou que a primeira vez que ouviu a canção foi em Fortaleza, em 2013. Segue “A Internacional” e outra canção de origem patrícia, “Gândola Vila Morena“, original de Zeca Afonso em 1971 e também transformada naquela altura em hino da resistência à ditadura portuguesa. Por ser uma canção mais calma, mesmo na versão punk dos GAROTOS PODRES, foi talvez o único momento sem roda na plateia, dando um descanso aos bangers. O que foi logo resolvido com “Aos Fuzilados da C.S.N.” e “O mundo Não Para de Girar” (e agora, nem o público).
Outra relativamente nova foi “Mucha Policia, Poca Diversión“, dos bascos ESKORBUTO, regravada pelos GAROTOS em 2020. Ecoa um grito em meio à multidão. “fascistas não passarão”. E “Repressão policial” e “Anarquia Oi!” pareceram dar fim a festa.
Eu devo estar destreinado de shows. As costas doíam muito e até acreditei que a banda não voltaria ao palco. Sim, eu caí na velha estorinha do bis. Afinal, teve até baqueta jogada para o público, né? Mas não, não acabaria aí, não sem aquela que é a mais conhecida música dos GAROTOS PODRES (quem nunca a ouviu numa noite de natal?). E “Papai Noel, Velho Batuta” (título modificado pela censura da ditadura militar – o título original a gente sabe qual foi) vem antecedida por “O Verme” e seguida de “Vou Fazer Cocô“. “Somos veio e feio vamos encher o saco de vocês com mais umas musiquinhas” dissera Mao. E, irreverente como ele, não poderia deixar de subverter a nossa própria revolta ao ocupante do Planalto xingando-o como um garoto, um garoto podre?
Bozo feio,
Bozo fedido,
Bozo cocozento.
Só mesmo José Rodrigues Mao Júnior para xingá-lo assim com tanta propriedade.
Setlist:
- Garoto Podre
- Oi, tudo bem?
- Vomitaram no Trem
- Nasci para Ser Selvagem
- Johnny
- Rock de Subúrbio
- Avante Camarada
- Antifa Hooligan
- A Internacional
- Gândola Vila Morena”
- Aos Fuzilados da C.S.N.
- O mundo Não Para de Girar
- Mucha Policia, Poca Diversión
- Repressão Policial
- Anarquia Oi!
- O Verme
- Papai Noel, Velho Batuta
- Vou Fazer Cocô
RATOS DE PORÃO
Mais uma vez pelas mãos da UNDERGROUND PRODUÇÕES (de parabéns pela festa desse retorno) o quarteto mais cultuado do crossover nacional subiu novamente ao palco para um show direto e arrasador. Gordo, que em outros shows sempre foi muito falante, dessa vez apenas mandou ver despejando um e mais outro som no público que continuava rodando feito doido. Foi show direto e reto, com Gordo ditando as regras, com o comando da guitarra de Jão, que nunca se limitou aos três acordes, complementada pela cozinha competente de Boka e Juninho, aos pulos e com sua vestimenta do MST.
O repertório do show foi baseado no álbum “RDP Ao Vivo“, de 1992, seguindo quase a mesma lista de sons. Àquela época, a banda celebrava seus dez anos de formação e aproveitava o sucesso dos álbuns “Brasil” e “Anarkophobia” e, dos dois, tirando deles praticamente metade do setlist daquele show no antigo Aeroanta, imortalizado no disco.
Agora, no Complexo Armazém, fãs da banda que talvez não tivessem nem nascido àquela época rodavam junto com veteranos do metal cearense, de “Morrer” até “Amazônia Nunca Mais“. De diferente da experiência de ouvir ao vivo aquele álbum ao vivo (a repetição aqui não é um erro), apenas a inclusão das novatas “Conflito Violento” (a mais nova de todas, lançada apenas em “Século sinistro”, 2014, o último álbum da banda), “Crocodila” (do “Carniceria Tropical“, de 1997) e “Suposicollor” (de “Just Another Crime in… Massacreland“, de 1993) e as ausências da homenagem ao OLHO SECO, “Que Vergonha“, de “V.C.D.M.S.A.” e “Cérebros Atômicos“.
Provavelmente, nem mesmo o Armazém esperava tanto público nessa retomada (tristemente a cerveja acabou nos bares ainda no meio do show dos RATOS). Algo que a casa tem que investir ou modificar é na forma como vendem as bebidas, causando por vezes, filas grandes nos caixas. Já falávamos disso no mundo antigo, parece que vamos ter que continuar falando agora.
Cada dia mais sujos e agressivos, o RATOS DE PORÃO lança novo disco brevemente. E provou que ainda tem muita lenha pra queimar, ainda bota muito banger pra rodar. Melhor que isso, só se suas letras deixassem de ser ainda tão atuais mesmo depois de tantos anos de estrada. Até mesmo “Suposicollor” continua escapando de ser datada. Talvez fosse ruim pra banda, mas seria melhor para todos nós.
Setlist:
- Morrer
- Mad Society
- Crianças sem Futuro
- Ascenção e Queda
- Beber Até Morrer
- Máquina Militar
- Guerrear
- Políticos em Nome do Povo…
- Caos
- Sofrer
- Crucificados pelo Sistema
- Vida Animal
- Plano Furado
- Plano Furado II
- Anarkophobia
- Aids, Pop, Repressão
- Realidades da Guerra
- Work for Never (Extreme Noise Terror cover)
- Velhus Decreptus
- Sentir Ódio e Nada Mais
- Igreja Universal
- Herança
- Paranóia Nuclear
- Crise Geral
- Conflito Violento
- Crocodila
- Suposicollor
- Amazônia Nunca Mais
Agradecimentos:
Fabrício Moreira, da Underground Produções, pela atenção e credenciamento.
Rubens Rodrigues, pela parceria e imagens que ilustram esta matéria (confira mais na galeria abaixo):