Já tão tradicional em Fortaleza que o nome “Underground” já começa a se tornar inadequado, o Underground Metal Fest, realizado pela produtora da qual roubou o nome, aconteceu pela décima vez esse mês. E, pela oitava vez, trouxe atrações de peso, divididas entre locais, nacionais e uma internacional. Ainda é underground porque nenhuma das seis bandas pode ser considerada mainstream (pelo estilo que adotam, não pela competência de seus membros), por se dedicar a atender a um público de gosto musical mais peculiar, menos popular, mas a qualidade da produção rivaliza com qualquer outro evento de porte semelhante com atrações mais radiofônicas. A casa, aparentemente reformada recentemente, também se mostrou uma boa escolha, com espaço, banheiros limpos e no coração de Iracema. Apresentaram-se SYSYPHUS (uma boa novidade), PANTÁCULO MÍSTICO (chegando do Setembro Negro), GRAVE DESSECRATOR (cariocas com sangue no olho), VAZIO (uma das novas bandas mais admiradas no metal nacional), REBAELLIUN (metal da morte vencendo a própria morte) e UADA (um mistério). Confira abaixo como foram as apresentações. Todas as fotos são de Miyagi Hernandes.
A primeira no palco foi a mais nova, mas não a menos experiente, SYSYPHUS, representada na noite por Felipe Ferreira, um dos nomes mais importantes da cena, que pode ser lembrado por bandas seminais como KRENAK e CLAMUS, no baixo e vocal, Dorneles Almeida, também da SHEOL, e Jhoni Rodrigues (uma quantidade de bandas que duplicariam a quantidade de linhas desta resenha). Barroso Sena, de outras dezenas de bandas, não esteve presente. A chegada de Sísifo, do mito grego, entidade condenada pelos deuses a rolar uma pedra até o topo de uma montanha, apenas para vê-la rolar de volta, simbolizando a tarefa interminável e sem sentido que enfrentamos na vida, veio com “Oneness”. E Felipe já meteu um solo de baixo pra botar pra fuder logo no início do festival. “O negócio tá só começando”, disse, após “Logical Suicide”, death metal do mais brutal possível. “Delusional Mimesis”, um tanto mais Black Metal, mostra que a banda não é só Death. E cabe notar que, aqui, Felipe explora bem mais a voz, já muito competente e brutal, que em outras bandas que capitaneou. Outra coisa que se via era a perfeição do som. Estava muito bom. Assim como Camus, a banda questiona o significado da existência humana em um universo aparentemente indiferente. E absurdo. Não coincidentemente, o nome do seu debut.
Mas indiferentes não podemos ficar ao festival da Underground, já tradicional na cena, um ritual de música extrema. E, nas palavras de Felipe, muito necessário. “Fortress of the Absurd” pareceu a única que tem um solo de guitarra realmente longo, mas, com o som que fazem, até isso se mostrou desnecessário. Terminaram com uma cover do Dissection, “Last Blood”, e a certeza de que seguirão com o sucesso de suas muitas empreitadas anteriores.
“Sob tétricos pilares de ébano de enleante e primorosa diadema” o doom obscuro, mítico e intelectual da PANTÁCULO MÍSTICO chega para “manter as flechas luminosas da virtude, atravessando as sombras do antigo caos e as ondas de doce lucidez que escorrem ” dos instrumentos do quinteto, acompanhado por Juliana Wayne, protagonista do início do show, com suas exortações ao mundo subterrâneo. A banda que foi a representante do Ceará no Festival Setembro Negro deste ano esbanja teatralidade, beleza e melodia em canções como a epônima e “Axioma”. Suas canções são tão delicadas, ao mesmo tempo que absurdamente eloquentes que a única coisa possível é deixar-se viajar, enquanto se presencia o lobo comendo o Sol. Há momentos de tanta fumaça que o baterista se perde no meio das nuvens, com a galera toda viajando sem sair do lugar. As canções são longas, especialmente “Ignis Luciferi” e “Magnitude Oculta”, cada uma com seus mais de dez minutos de prece. É prece aos céus, ao inferno, à Terra. “Vagando por Caminhos Desconhecidos” é, talvez, a que lhes define, a sua melhor, indiscutivelmente, mas o posto é alcançado muito arduamente, devido à presença de tantas outras tão boas. Cicero Rui (guitarra), Moisés Amok (bateria), Jhony Garcia (guitarra), Tork Highill (teclados) e Júnior Qz (voz) são os nomes por trás deste som.
Chega a hora das atrações nacionais do festival. Os cariocas da GRAVE DESSECRATOR com canções principalmente do seu álbum mais recente, “Immundissime Spiritus”, lançado este ano. As duas primeiras canções do álbum “Necromantical Hex” e “Death Misery Ecstasy”, também são as duas primeiras do show do metal da morte. Apesar do estilo, há movimentação intensa no palco do guitarrista Sacrilege e do baixista N. Wicked. O batera Mkult agitando muito também. Mas a banda do Rio de Janeiro também tocou canções mais antigas, dos álbuns “Dust to Dust” e “Insult”. E que solo foi esse em “Funeral Mist”? “Hoje, a noite é de Satanás”, amaldiçoa o vocalista/guitarrista Butcherazor. Se ele estava certo ou não, quem pode saber? Mas, com um show tão intenso, podemos até cometer o sacrilégio de chamá-los de hard rock do black metal.
Uma das bandas mais aguardadas da noite era a VAZIO. Com um estrondoso sucesso no meio underground, devido à competência de seu black metal atmosférico, a banda de São Paulo composta por Renato Ximenes (vocal e guitarra), Eric Nefus (guitarra), Nilson Slaughter (baixo) e Daniel Vecchi (bateria) trouxeram suas míticas canções do álbum “Eterno Aeon Obscuro” e de seu um milhão de splits. Cheio de elementos, o show recria atmosferas de beleza cósmica, com o veneno de Vênus, a imensidão caótica e destituída de chão que é Júpiter, os núcleos que queimam como infernos por toda a eternidade, a cura no vazio, no grande imenso enorme nada, nos “Elementais da Matéria Escura” “Sob a noite espectral. O show é direto e reto, mas cada nota é calculada e sentida por eternidades cheias de fogo. É uma experiência a se experimentar. De novo, de novo e de novo.
É impossível falar de um show da REBAELLIUN sem um gosto amargo de tristeza. A seminal banda de Death Metal gaúcha perdeu em um curto espaço de tempo (quatro anos) dois integrantes chave, Lohy Silveira (vocal e baixo) e Fabiano Penna (guitarra). E eram dois irmãos (nossos) admirados não apenas pela música, mas por seus posicionamentos na vida também. Então, abrir essa parte do texto é um desafio, como foi um desafio ver, pela primeira vez, a nova formação da REBAELLIUN (Sandro Moreira, bateria, Evandro Passos, guitarra, e Bruno Añaña, baixo e vocal) com esses dois desfalques monstros.
Não é a primeira vez da Rebaelliun em Fortaleza, mas é a minha primeira vez, primeira vez do Evandro, disse Bruno antes de “Legion”, do “The Hell Decrees”, último trabalho que contou com a voz e as cordas de Penna e Lohy. Apesar desse travo inevitável para quem já acompanhava a banda, o trio atual continua provando que faz um excelente show. Brutal demais, Sandro espanca sem pena a coitada da bateria. “A Rebaellium começou em 98, nunca mais parou e nunca mais vai parar, haja vista tudo o que aconteceu com essa banda”, sentenciou Bruno.
O show continua com petardos como “The Last Stand” e “The Path of The Wolf”, outra do “Hell Decrees”. Sempre simpático e comunicativo, apesar do estilo que tocam, Bruno, com muito respeito, relembrou a história da banda, da perda do Penna, da entrada de Evandro Passos. Lembrou também que o primeiro single com Evandro já foi na gestão do antigo presidente e que a Rebaellium é abertamente contra o fascismo, racismo e homofobia do canalha. “Cadeia é pouco pra esse merda”, disse (e concordamos). A música seguinte tem o nome do sujeito: “The Messiah”.
Ainda recontando a história da banda, Bruno lembrou que em 2022 também perderam Lohy Silveira, mas ainda assim o Rebaellium não quis parar. “Meu nome é Bruno Añaña e é muita honra estar aqui”, arrematou.
E do disco novo, “Under the Sign of Rebellion”, “In Heresy We Trust” é o que vem em seguida, com pedido de palmas para “o cara mais resiliente, já teve duas chances de parar”, Fábio Moreira. Confirmando que estes gaúchos ainda seguem sob o signo da rebelião, o show ainda teve os agora clássicos “Affronting the Gods” e “Spawning the Rebellion”, mas o trio, por causa do tempo, cortou justamente “At War”. Isso não pode.
Vocês nunca viram o rosto de Kevin Bedra, ou Trevor McClain, ou Nathan Verschoor. No máximo viram alguma foto de Jake Superchi, mas todo paramentado nos Corpse Paints. E mesmo quem esteve no Underground Metal Fest continuou sem saber como era o rosto dos caras. No máximo dava para afirmar que este ou aquele tinha uma longa barba, mas não mais que isso. Sequer podemos afirmar que quem estava ali tinha mesmo esses nomes. Eles poderiam muito bem ser substituídos por alguma outra pessoa. James Sloan poderia estar ali, por exemplo. Só seria necessária uma única coisa: tocar muito, muito bem, encantar, enfeitiçar, hipnotizar, como os caras de Portland fazem.
O quarteto de encapuzados criou uma atmosfera mítica e misteriosa, mantendo-se longe de qualquer contato humano antes do show e transformando o Jam Rock num ambiente de elocubrações astrais magníficas e magnânimas. Com as luzes do teto do palco desligadas, iluminados apenas por uma cegante luz branca que só nos permitia ver-lhes os contornos, o UADA tocou pelo menos uma canção de cada um dos seus quatro álbuns, sendo acompanhados com “hey, hey, hey” pelo público ainda não completamente petrificado em “The Purging Fire”. Em “Snakes & Vultures” um dos malditos ghouls quebrou uma corda de seu instrumento, mas continuou tocando como se nada tivesse acontecido. Só entre uma música e outra é que deixaram, de propósito, o som agudo de uma corda da outra guitarra pressionada por todo o tempo necessário para realizar a troca da corda, numa demonstração de criterioso sadismo e maldade pura.
Nenhuma palavra é trocada com o público. A comunicação é só através da música. Propositalmente, ao removerem a imagem de si próprios, fica só o som. É mais fácil é o transe, a ausência de matéria, o inferno gélido no calor da capital do Ceará, reatravessando o vazio, cultuando um sol que já morreu.
Agradecimentos:
Underground Produções e Fabrício Moreira, pela atenção, credenciamento e parceria de sempre.
Miyagi Hernandes, pelas imagens que ilustram essa matéria. Confira mais neste link: Galeria de fotos do UMF
Confira também a cobertura (em vídeo) do Detector de Metal: