A coluna dessa semana é particularmente uma das mais difíceis de escrever desde que iniciei essa empreitada e ao final saberão o motivo. Até certo ponto é comum artistas começarem numa seara musical e irem se adaptando ao mercado aos poucos com o intuito de sobreviverem comercialmente e artisticamente. No caso de Marcie Free (chamado Mark Free no início de carreira), sua trajetória artística revela pureza e lealdade a um estilo que se manteve/mantém a margem do mainstream há um longo tempo, sobrevivendo na mente dos saudosistas como eu apenas por causa dos lampejos de seus tempos áureos, a saber, uma parte dos anos 80 e 90.

Free iniciou sua carreira aos 19 anos, mas somente 10 anos depois iria se reunir com o lendário baterista Carmine Appice (Cactus, Ozzy Osbourne) para participar de uma banda idealizada por ele. Nascia assim o King Kobra, que em 1985 estreava com seu disco Ready To Strike, e sua voz potente e classuda já mostrava a que veio. Canções como Hunger e Tough Guys se tornaram clássicos instantâneos do hard rock. No ano seguinte, em 1986, já com Mark consolidado como frontman da banda, lançaram o clássico Thrill Of A Lifetime. O disco em questão catapultou a banda ao estrelato, em parte por causa da icônica Iron Eagle (Never Say Die), trilha sonora do filme Águia De Aço, lançado no mesmo ano. Vale ressaltar que o filme em questão foi um sucesso por pouco tempo, sendo posteriormente engolido pelo clássico Top Gun. Talvez esse fosse o prenúncio do que seria a carreira de Mark, já que nunca obteve o reconhecimento merecido. Talvez por isso, Free seguiria por um caminho mais melódico após deixar o King Kobra.

Assim, Mark se juntou ao Signal em 1989 e lançou uma das maiores obras primas do Aor: o sensacional Loud & Clear. Beira o inacreditável o fato desse disco até hoje ser considerado apenas por fãs e totalmente ignorado pela mídia, visto que se trata de uma das maiores obras do gênero. Não é exagero atribuir a esse disco todas as qualidades já citadas, pois esse álbum poderia facilmente ser oferecido como resposta a qualquer pessoa que perguntasse o que é Aor.

Com as visíveis mudanças no mercado musical durante a transição dos anos 80 para os 90, a necessidade de um som mais moderno era inevitável para que os artistas se mantivessem relevantes. Tendo em vista o surgimento do grunge, Free investiu em uma banda de hard rockcom sonoridade um pouco mais densa. A nova banda se chamaria Unruly Child e gravaria seu primeiro disco em 1992, auto intitulado. O grupo porém não chegou a fazer nem 5 shows e em seguida Mark gravou outra obra prima do gênero Aor: o igualmente fabuloso Long Way From Love. Como uma espécie de irmão gêmeo de Loud & Clear, o disco é frequentemente citado como uma das maiores obras do rock de arena e assim como seu gêmeo de 1989, pode ser indicado a todo aquele que deseja compreender o que é Aor. Canções emocionantes, letras doloridas e cativantes, frutos dos pensamentos e tormentos vividos por Mark, ganharam forma através de acordes belos, climas que exalam romantismo e uma certa tristeza, tudo permeado com a aura oitentista típica: teclados proeminentes, guitarras melodiosas, vocais fortes e cozinha competente e coesa. Aqui começava uma fase de mudanças profundas na vida pessoal de Mark. Após anos sofrendo de disforia de gênero, Long Way From Love foi o último trabalho assinado como Mark. Após uma operação, Mark sai de cena e dá lugar a Marcie Free.

A partir daí, sua vida artística nunca mais seria a mesma. Os anos 90 não estavam preparados para tamanha mudança, e além disso a mídia já não dava muita atenção ao melodic rock, o que contribuiu para que Marcie amargasse um ostracismo injusto e cruel. Suas batalhas pessoais seriam retratadas em Tormented, seu disco solo de 1996, feito após a cantora se mudar pra perto de sua família. Nesse período (1 ano antes, em 1995) Marcie chegou a trabalhar numa casa de hipotecas para sobreviver. A mudança causou estranheza até mesmo em amigos próximos, como o baterista Carmine Appice. Em uma entrevista Carmine relatou que ao ver Mark após a transição de gênero, brincou dizendo que ela usava mais maquiagem na época do King Kobra do que agora que havia se tornado uma mulher. Mesmo gravando em estúdio, Marcie se afastou dos palcos durante os anos 90.

Em 2010, após anos de luta contra a depressão e o alcoolismo, a gravadora Frontiers fez uma proposta para que o Unruly Child voltasse à ativa. Marcie aceitou e reuniu-se com os membros originais da banda, gravando 3 bons discos de estúdio nos anos seguintes, Worlds Collide de 2010, Can’t Go Home de 2017, Big Blue World de 2019, além de um registro ao vivo intitulado Live From Milan, de 2018. Marcie seguia na ativa, e seu último registro foi a canção Say It Like You Mean It, lançada como single em 2021.

Apesar de viver à margem do mainstream, Marcie seguia como um ícone do estilo, obtendo cada vez mais admiração e elogios por sua carreira, trajetória e principalmente por seus trabalhos musicais, todos de excelente nível. Sua caminhada foi interrompida nesse fatídico mês de outubro do ano de 2025, quando Marcie nos deixou aos 71 anos. Comecei essa matéria dizendo que era uma das mais difíceis de se escrever justamente por isso. Uma artista ímpar, que travou uma dura batalha contra seus demônios pessoais, transformando sua dor e seus dilemas em músicas carregadas de emoção genuína. Nesta semana não quero apenas indicar um artista, quero indicar a artista que nunca deixou seu estilo de lado, seja com o King Kobra, o Signal, o Unruly Child ou em carreira solo, Marcie foi 110% Aor, a artista mais Aor de todas na totalidade de sua pequena discografia. Uma perda imensa e um reconhecimento que nunca veio de fato. Hoje, coloque The Last Time pra escutar e sinta cada frase, cada acorde e cada nota como se fosse exatamente a última vez. Se você não derramar uma lágrima e sua voz não embargar me desculpe, mas talvez o novo disco do Oruam seja mais a sua praia. Descanse em paz Marcie.

O Som…
Como dito antes, termino estas linhas definindo Mark/Marcie como a epítome do que é Aor. Lógico que ao pensar o genêro lembramos de Journey, Boston, Survivor e Foreigner como os maiores representantes. Porém todas essas bandas flertaram com outros estilos, seja o progressivo, o classic rock ou até mesmo o hair metal. Isso não tira os méritos de nenhuma dessas bandas, mas Marcie foi fiel ao Aor até o fim, ora mais pesada, ora mais melódica mas sempre dentro do melodic hard rock de arena, nos brindando com uma discografia que vale cada segundo de audição.
Discografia:
Solo:
- Long Way From Love – 1993
- Tormented – 1996
Com King Kobra:
- Ready To Strike – 1985
- Thrill Of A Life Time – 1986
Com o Signal:
- Loud & Clear – 1989
Com o Unruly Child:
- Unruly Child – 1992
- Worlds Collide– 2010
- Down the Rabbit Hole– 2014
- Can’t Go Home– 2017
- Big Blue World- 2019)
- Our Glass House – 2020
