Em 1996, o Carcass não era “apenas” mais uma banda de death metal: era uma instituição. Os ingleses já tinham atravessado três fases bem marcadas – o caos fétido e gore dos primórdios (Reek of Putrefaction, Symphonies of Sickness), a fase técnica e complexa de Necroticism – Descanting the Insalubrious e, por fim, o death metal melódico e cirúrgico de Heartwork, que redefiniu o gênero e virou referência obrigatória. A banda tinha saído do underground extremo para um patamar em que qualquer passo em falso seria julgado com lupa.

Só que o Carcass nunca foi um grupo de ficar parado. A saída de Michael Amott após Heartwork mexeu na química interna, e o som começou a apontar para algo mais direto e rockeiro. Bill Steer assumiu ainda mais protagonismo nas guitarras, Jeff Walker manteve o veneno nas letras, e a banda, como um todo, parecia interessada em experimentar um caminho mais grooveado, menos preso às amarras do death metal tradicional. Era uma formação madura, tecnicamente afiada, mas cansada da obrigação de repetir o mesmo disco para agradar o fã mais conservador.

O clima nos bastidores, porém, não era dos mais estáveis. Pressões de gravadora, mudança de direção musical e desgaste interno faziam com que Swansong ganhasse um peso extra: sem que o público soubesse claramente na época, aquele álbum se desenhava como o “canto do cisne” da fase clássica do Carcass. Pouco tempo depois do lançamento, a banda encerrou as atividades – o que ajudou a cristalizar a ideia de que Swansong seria o “disco da derrocada”, o “erro”, o “passeio para o lado errado”.

Anos depois, com a poeira abaixada, fica claro que a história não é essa. Swansong não é uma bomba que explodiu a banda; é um disco ousado que chegou em um momento delicado, com mudanças de formação, expectativas irreais e uma cena pouco aberta à diversidade. Se o fã da época esperava Heartwork 2, o que veio foi um híbrido de death, hard rock e groove metal, com um senso absurdo de composição.

O tempo passou, o Carcass renasceu lá na frente, e a reavaliação foi inevitável: Swansong é muito mais “bom” do que aquela recepção inicial deixou parecer.

A seguir, faixa a faixa, por que esse “último recado” da fase inicial do Carcass merece muito mais respeito.

1 – “Keep on Rotting in the Free World”

Logo de cara, um manifesto. O título sacaneia Neil Young, o riff abre num groove quase hard rock, e a banda mostra que sabe ser pegajosa sem perder peso. A cozinha é um trator, a guitarra cospe linhas simples e eficazes, e Jeff Walker canta com aquele cinismo característico. É uma abertura que deixa claro: se você aceitar que o Carcass pode soar mais “rock” sem virar paródia, a recompensa é grande.

Veredito da faixa: excelente cartão de visitas, moderna para época e envelheceu muito bem.

2 – “Tomorrow Belongs to Nobody”

Aqui o disco mostra que não vai viver só de refrão fácil. Riffs truncados, clima meio sombrio, e um senso de urgência que remete aos trabalhos anteriores, mas com menos velocidade e mais malícia. Os solos são cheios de fraseados marcantes, sem necessidade de fritação gratuita. É um som que poderia tocar ao vivo tranquilamente entre clássicos mais pesados sem soar deslocado.

Veredito da faixa: forte, coesa, ótima “ponte” entre o Carcass antigo e o novo.

3 – “Black Star”

Talvez uma das mais subestimadas do álbum. Tem cara de single sem perder a identidade: riff principal memorável, groove que faz balançar a cabeça, e um refrão que fica na memória mesmo com vocal rasgado. A estrutura é enxuta, direta, e a produção valoriza cada detalhe. Se fosse de qualquer banda de groove metal noventista “da moda”, seria hit; vindo do Carcass, virou alvo de estranheza na época.

Veredito da faixa: hit oculto. Poderia muito bem ser porta de entrada para novos fãs.

4 – “Cross My Heart”

Aqui a banda flerta com um clima quase “street metal”, mas com aquele sarcasmo ácido nas letras. Os riffs são cheios de balanço, a música respira sem pressa, e o refrão é facilmente cantável – mesmo gritado. O solo é melódico na medida certa, mostrando que a dupla de guitarras sabia exatamente onde colocar cada nota.

Veredito da faixa: carismática, cheia de personalidade, prova que o Carcass sabia escrever canções de rock pesadíssimo.

5 – “Child’s Play”

Mais cadenciada, com um ar cínico e quase malévolo. O groove aqui é o protagonista: bateria marcial, baixo pulsante e guitarras que brincam com pequenas variações de riff, criando tensão o tempo todo. É aquele tipo de faixa que não precisa correr para ser pesada; pesa pelo clima, pelo peso na escolha de acordes e pela interpretação vocal.

Veredito da faixa: não é das mais “instantâneas”, mas cresce a cada audição. Profundamente subestimada.

6 – “Room 101”

Baseada no famoso conceito de tortura psicológica de 1984, de George Orwell, “Room 101” traz um Carcass mais sombrio, beirando o paranoico. As guitarras criam paredes de som que parecem se fechar, enquanto a voz de Jeff soa ainda mais venenosa. O refrão, mais uma vez, é pegajoso sem ser óbvio. É uma das músicas em que a fusão entre temas inteligentes, grooves modernos e aura opressiva funciona melhor.

Veredito da faixa: densa, inteligente, e um dos melhores momentos líricos do álbum.

7 – “Polarized”

Mais agressiva, com riffs que lembram que o Carcass veio do death metal, mesmo que aqui tudo esteja mais “limpo” e focado em estrutura. Ela alterna momentos diretos com pequenas quebrações rítmicas, mostrando que a banda não esqueceu como escrever temas intrincados – só escolheu colocar isso a serviço da música, e não da técnica pela técnica.

Veredito da faixa: porrada controlada, perfeita para calar quem acha que Swansong é “molenga”.

8 – “Generation Hexed”

Uma crítica ácida à alienação contemporânea, embrulhada em uma música que equilibra melodia e peso com maestria. Os riffs têm um quê de thrash filtrado pelo gosto roqueiro da fase, e o refrão parece feito na medida para ser gritado em coro. O trabalho de bateria é um show à parte, com viradas criativas que levantam a música o tempo inteiro.

Veredito da faixa: grande destaque do álbum – inteligentíssima e cativante.

9 – “Firm Hand”

Aqui o Carcass abraça sem medo o lado rock’n’roll: batida reta, riff direto, e uma vibe quase de “faixa de estrada”… só que suja, cínica e com aquele veneno típico da banda. É uma música que talvez tenha chocado os defensores ortodoxos do death metal, mas que prova o quanto o grupo sabia escrever canções fortes em qualquer formato.

Veredito da faixa: simples, eficiente e com um charme sujo irresistível.

10 – “R**k the Vote”

Sarcasmo político, crítica social e uma base sonora que mistura groove quase dançante com guitarras cortantes. É uma daquelas faixas que mostram por que Swansong está tão à frente de muita coisa lançada ali em meados dos 90: o Carcass entendeu o espírito da época, absorveu o groove e o rock mais acessível, e devolveu tudo isso filtrado pela própria identidade.

Veredito da faixa: um tapa na cara travestido de “música fácil”. Genial.

11 – “Don’t Believe a Word”

Mais um exercício de cinismo, com um clima desenganado e riffs que alternam peso e melodia com naturalidade. Não é a faixa mais lembrada do disco, mas mantém o nível lá em cima, com um daqueles refrães que você percebe cantarolando sem notar.

Veredito da faixa: sólida, mantém a coesão da reta final do álbum.

12 – “Go to Hell”

Fechando o álbum, uma música que sintetiza bem a proposta de Swansong: groove, sarcasmo, peso e um certo ar de “último recado” para o mundo do metal naquele momento. Há algo quase autoirônico no título, como se a banda soubesse que estava dividindo opiniões e não estivesse nem um pouco preocupada com isso.

Veredito da faixa: encerramento perfeito, com cara de statement.

Reação, injustiça e reavaliação

Na época do lançamento, Swansong sofreu com a sombra gigantesca de Heartwork e com uma cena de metal extremo que andava fechada em dogmas. O flerte com estruturas mais próximas do hard/groove, o foco em refrães fortes e o afastamento definitivo do death metal tradicional fizeram muitos torcerem o nariz. Some a isso o fato de o disco acabar marcando, simbolicamente, o “fim” da primeira era do Carcass, e a rejeição estava pronta.

Mas o tempo é o maior juiz. O que antes soava “comercial” hoje soa maduro, inventivo e muito bem amarrado. Em vez de repetir fórmulas, o Carcass ousou e entregou um álbum repleto de riffs memoráveis, letras afiadas e um senso de groove que muita banda até hoje tenta reproduzir. Muitos grupos modernos que misturam death, rock e groove não chegam perto da classe mostrada aqui.

Veredito final: Bom ou bomba?

Swansong está longe de ser uma bomba. Na verdade, é um disco extremamente consistente, corajoso e cheio de composições fortes. Se você se livrar da expectativa de ouvir Heartwork parte 2 e simplesmente encarar o álbum pelo que ele é – um Carcass mais roqueiro, mais grooveado e igualmente venenoso – descobre um trabalho que envelheceu melhor que muito “clássico intocável”.

Veredito: BOM – daqueles que o tempo tratou de provar que estava muito à frente do seu julgamento inicial.