Na noite do dia 12/10/2024 a cidade de São Paulo ainda estava tentando sobreviver ao caos que uma chuva curta, porém fortíssima deixou. Parte da cidade sem água, luz, internet… E o que faltava em serviços básicos, sobrava em revoltas. Mas não vamos falar de coisas difíceis (not today).

Nesse clima, não foi nada difícil ver que a rua do ótimo Tokio Marine Hall estava totalmente apagada, porém apenas da quadra seguinte a casa em diante. Seriam os Deuses agindo para que algo histórico acontecesse no antigo Tom Brasil? Cheguei com essa dúvida e saí com essa certeza.

A casa, muito bem organizada e com muita acessibilidade é o lugar certo para fazer um grande espetáculo. Banheiros limpos e organizados antes e depois do show, locais para comprar bebidas na pista, acústica e telões impressionantes. Talvez poderiam ter avisos um pouco menos “de cinema” antes dos shows começarem, pois pedir que as pessoas “deixem o celular no silencioso” me parece um pouco demais para a porradaria sonora que estaria por vir.

Um adendo à mesa de Merchandising do Living Colour: camisas lindas e com estampas super coloridas (R$150) enfeitavam o stand enquanto os copos (R$30,00), que continuam sendo os xodós dos fãs brasileiros, enfeitavam a mesa. No meio de tudo isso, discos de vinil do Angra, que é empresariada por Paulo Baron, dono da Top Link, organizadora do evento. Eu, particularmente não achei tão legal, pois o espaço deveria ser do artista que está na casa tocando. Será que no show do Angra, na mesma casa no dia 21/12 teremos o clássico “Vivid” para vender? Fica o questionamento.

Copo de turnê do LIVING COLOUR, disponível na banca de merchandising. Foto por: Gabriel Furlaneto.

Voltando ao que interessa, a abertura dos trabalhos ficou a cargo dos mineiros do Black Pantera, que mistura um hardcore potente com crossover e letras extremamente politizadas. O trio Charles Gama (guitarra, vocal), Chaene da Gama (baixo) e RodrigoPancho” Augusto (bateria) fez um show muito energético (ligado no 220) e carismático, que infelizmente teve seu início visto por poucas pessoas, visto que devido à insanidade instaurada na cidade, as pessoas encontraram dificuldades para deixar suas residências.

Dá para dizer que o Living Colour andou nos anos 80 para que eles pudessem correr hoje? Sim, e o Black Pantera disse! Um show totalmente inclusivo, contando até com o já tradicional “Mosh das Minas” na música “Sem Anistia”. Outro momento emblemático foi o Wall Of Death promovido em “Revolução é o Caos”, além da já clássica “Fogo nos Racistas”. Teve também muita emoção quando Chaene assume os vocais em “Tradução”, música feita em homenagem à sua mãe, que está presente no último trabalho da banda, o álbum “Perpétuo”, de 2024. Após uma hora de show, finalizado com “Boto Pra Fuder”, o trio sai de cena com a certeza de ter feito um show extremamente competente para aquecer os presentes para a atração principal.

Por volta das 22:10, luzes apagadas e a famosa marcha imperial da franquia “Star Wars” começa. Não poderia ser mais propício, pois o que se viu nas quase duas horas seguintes fazia parecer que Corey Glover (vocais), Vernon Reid (guitarra), Doug Wimbish (baixo) e Will Calhoun (bateria) eram de outra galáxia, tamanha técnica e carisma dos 4 em cima do palco.

Corey Glover . Foto por: André Tedim

Abrindo com “Leave It Alone”, do album “Stain” (1993) os caras já colocaram a casa a baixo com sua potência característica. À direita do palco, Doug fazia miséria com o seu baixo enquanto brincava com a plateia. À esquerda, Vernon tocava ferozmente sua guitarra enquanto Will arrebentava as peles e pratos (belos pratos inclusive). Ao centro, Corey Glover com seus enormes dreadlocks na cor branca cantava interagindo pouco com a platéia, que entoava o refrão a plenos pulmões. 

O álbum “Stainfoi, inclusive, a grande estrela da primeira parte do show. Das 6 primeiras musicas do show, 5 foram dele. Além da faixa de abertura, “Ignorance Is Bliss”, “Bi”, “Ausländer” e “Never Satisfied” estiveram no início da apresentação. Nessa última, após um show à parte no final da música, Corey é ovacionado por toda a casa, abrindo um grande e belo sorriso, visivelmente feliz com a homenagem que acabara de receber. Bom destacar que entre essa chuva de clássicos ainda teve espaço para a porrada “Desperate Peolpe”, do álbum “Vivid”, de 1988, que resenhamos aqui no Headbangers Brasil.

Falando em “Vivid”, é do álbum de maior sucesso da banda que vem outro grande hit. Quando os primeiros acordes de “Funny Vibe” começaram, o que se viu foi um pandemônio no meio da pista. A banda entregava tudo e claramente parecia muito satisfeita com o retorno que vinha dos fãs ensandecidos.

Vernon Reid. Foto por: André Tedim.

Um pequeno solo de bateria para que o baixista Doug Wimbish pudesse trocar de baixo (ritual esse feito em praticamente todas as músicas, alternando seus três ou 4 modelos trazidos para a apresentação) e “Sacred Ground”, do album “Pride” (1995) começa a ser executada. A platéia não se animou tanto nessa faixa em particular, mas isso estava prestes a mudar de figura muito rápido…

Quando Vernon pegou sua guitarra e começou “Open Letter to a Landlord” uma atmosfera completamente diferente tomou conta da casa: a primeira parte mais lenta, com Corey colocando toda a emoção no microfone foi digno de sair do Tokio, pagar outro ingresso e voltar. Quando o andamento mais acelerado entrou em cena, a casa em uníssono bradava: “now you can tear a building down, but you can’t erase a memory”. A impressão é de que o tempo não passa para Corey, que simplesmente lança um agudo de uns 20 segundos para encerrar de uma maneira mágica para os presentes. Novamente todos se rendem ao talento deste senhor de 59 anos.

Após uma performance desse nível, a banda sai de cena e deixa apenas Will Calhoun para um solo de bateria. Apesar de eu não ser um entusiasta de solos durante os shows, é inegável a técnica apurada de Will, que misturava as pancadas que sua baqueta dava nas peles e pratos com alguns pads eletrónicos tocados com as mãos.

Will Calhoun. Foto por: André Tedim

A volta da banda é com “Flying”. A música do álbum “Collideøscope“ tem uma vibe bem mais cadenciada que o restante do setlist, e não foi dos momentos mais empolgantes. No final, após um solo de guitarra magnífico, foi a vez de Vernon ter o seu nome gritado por todos.

Era a hora do mestre das quatro cordas dar às caras. No medley de covers White Lines (Don’t Do it) / Apache / The Message, Doug pôde mostrar toda a sua técnica tocando e também cantando partes das musicas dos artistas “Grandmaster Melle Mel”, “The Animals” e “Grandmaster Flash and the Furious Five” respectivamente. Mais um integrante a ser (justamente) ovacionado.

Doug Wimbish. Foto por: André Tedim

A clássica e atemporal “Glamour Boys” (Vivid) colocou novamente a casa para tremer desde a sua primeira nota. Todos cantavam e dançavam, a essa altura, cientes do tamanho do espetáculo que estavam vivenciando. 

Festa formada, era a hora da “música de amor”, disse Reid enquanto fazia um coração para a platéia. Assim, o bluesyLove Rears its Ugly Head”,do aclamado “Times Up“, de 1990, entrou em cena. E apesar de seu clima mais lento, não fez a platéia esfriar

Se a mais lenta do set havia acabado de ser tocada, nada mais justo que a mais pesada vir na sequência para dar o equilíbrio perfeito. Assim a porrada “Time’s Upveio como um soco acertando precisamente o coração dos presentes, que pulavam e cantavam, arrancando sorrisos de toda a banda.

Hora do hino maior. Quando a vencedora do GrammyCult of Personality” começou, ouso a dizer que o excelente som da casa (que foi 100% perfeito o show inteiro) estava quase sendo coberto pelos fãs que gritavam a letra como se não houvesse amanhã. Fosse outro vocalista talvez o som seria engolido, mas se tratando de Corey Glover, o que se viu da platéia foi um luxuoso backing vocal para o vocalista, que usou toda a sua potência.

Type”, que foi dedicada ao Black Pantera, fecha o show com seu peso e velocidade. 

Uma noite com muita técnica, precisão e virtuosismo, que certamente fez com que os presentes esquecessem, por alguns momentos, o quão bagunçada a cidade estava

Enquanto “What’s Your Favorite Color” é tocada nos p.a’s, a banda agradece ao público, visivelmente feliz e emocionada com o que viveram. E a recíproca era verdadeira. A tradicional foto vinha carregada de gratidão e um desejo de que aquele “good night” fosse um “see you soon”, e tomara que seja.

O Living Colour não é só ótimo. O Living Colour é necessário. 

Uma das bandas mais subestimadas que existem, não só pelo conceito histórico de toda a sua luta desde o início para poderem ter seu lugar ao sol (se hoje com todos os canais de denúncia e exposição ainda se vê uma onda de racismo gigantesca, imagine como era nos anos 70 e 80 nos EUA, onde havia uma segregação desumana), mas pela qualidade musical desse quarteto lendário do “Funk Rock” americano, que está desde 1984Lutando pelo direito de lutar pelo seu bairro”.

 

Agradecimentos especiais a Top Link, Isabelle Miranda e Tokio Marine Hall.

 

SET LIST BLACK PANTERA:

1 Provérbios 

2 Padrão é o caralho 

3 Dreadpool Zero 

4 Boom! 

5 Perpétuo 

6 Fogo nos racistas 

7 Tradução 

8 September (Earth, Wind & Fire song) 

9 Fudeu 

10 Black Book Club 

11 Sem Anistia 

12 Candeia 

13 Revolução É O Caos 

14 Boto Pra Fuder 

 

SET LIST LIVING COLOUR:

1 Leave It Alone 

2 Desperate People 

3 Ignorance Is Bliss 

4 Bi 

5 Ausländer 

6 Never Satisfied 

7 Funny Vibe 

8 Sacred Ground 

9 Open Letter (to a Landlord) 

10 Drum Solo 

11 Flying 

12 MEDLEY: White Lines (Don’t Do It)/ Apache/ The Message 

13 Glamour Boys 

14 Love Rears Its Ugly Head 

15 Time’s Up 

16 Cult of Personality 

17 Type 

Texto por: Gabriel Furlaneto

Fotos por: André Tedim