Fotos: Rubens Rodrigues e Victor Rasga
Alguns shows acabam gerando mais buzz pelo que se passa fora da música do que pela parte musical em si. Alguns fatos, normalmente vistos em shows de outros estilos, quase nunca em shows de rock, aconteceram durante o show do SEPULTURA, parte do Festival Metal Weekend, ganharam longos minutos nos noticiários nacionais, e até locais. Esperamos o desenrolar dos acontecimentos (esta é uma história em progresso), então optamos por deixar amadurecer as consequências para, agora, focar no que realmente vale a pena e nos ajuda a viver nossas vidas, a música. Não nos esquivaremos de comentar, seguindo aproximadamente a cronologia, da suposta agressão a tudo o que é correto em 2023, mais especificamente, ao vocalista Derrick Green, mas vamos focar aqui no que nós e quase todos fomos fazer no Armazém: ouvir música.
Fotos: Rubens Rodrigues
Vamos a isso, com fotos de Rubens Rodrigues (shows de sexta) e Victor “Rasga” Araújo. No coração pulsante de Fortaleza, Ceará, o Complexo Armazém foi tomado por uma avalanche sonora que ecoou por dois dias inesquecíveis, 7 e 8 de julho. O tão aguardado Metal Weekend, trazido à cidade pela D Music Transformação Musical, aportou na cidade em sua primeira edição, trazendo consigo uma verdadeira celebração do poder e da paixão desse gênero musical. Com as lendas do heavy metal brasileiro, ANGRA e SEPULTURA, ocupando os postos de headliners, junto a atrações locais de peso, o evento prometia uma experiência épica e visceral. E não decepcionou. Há até um certo detalhe que está repercutindo nacionalmente e do qual falaremos mais tarde.
Fotos: Rubens Rodrigues

O festival começou com uma homenagem à mais icônica das bandas de Heavy Metal do mundo, o IRON MAIDEN, com a local CHEMICAL KILLERS reproduzindo alguns dos maiores sucessos do sexteto inglês. E se começamos com essa aura NWOBHM no Armazém, continuamos assim com a STEEL FOX, mas agora com som autoral, muito bem-feito e calcado no som inglês dos anos 80. Aqui, sons muito bem trabalhados como “My Glory” (e seu riff que é puro IRON MAIDEN) e “Red Snow”, que dá nome ao álbum mais novo, lançado ano passado). E o que o quinteto traz é solo aqui, solo lá, guitarras dobradas, baixo galopante de Felipe Praciano, rife atrás de rife, bateria matadora de Bosco Lacerda, tudo o que o headbanger mais gosta numa banda do estilo. Só é estranho cantar sobre algo que nos é tão estranho, ainda mais no Armazém (deve ser de propósito que ele seja tão quente. Assim a gente compra mais cerveja).

Falando em cerveja, já reclamamos aqui mais de uma vez das enormes filas nos caixas, mas, dessa vez, a casa ou a produção acertou em botar caixas móveis, o que facilitou não só para quem comprou algo neles, mas até para quem preferiu o caixa tradicional, que teve filas diminuídas. Parabéns pela atitude.
A briga priesteana de guitarristas (Daniel Camelo e Yago Sampaio) continua bonita em “Raise Swords”, ou em “The Clash of Worms”, que é linda de chorar. Ainda teve “Knights of Freedom” e, claro, o set foi arrematado com a epônima da banda, com Robson Alves puxando “Eu falo steel, vocês falam fox”. Com performance avassaladora, a banda cearense uniu todos numa comunhão de vozes e energia emanada que preencheu cada canto do Complexo Armazém.
Fotos: Rubens Rodrigues
ANGRA 
Fotos: Rubens Rodrigues

Agora já era impossível andar no Armazém. A pista estava completamente abarrotada de angramaníacos. E até mesmo o camarote não lhe ficava devendo nada, também repleto de pessoas. Atrás do palco, o anjo do renascimento já aguardava os cinco integrantes do Angra, Rafael Bittencourt (guitarra), Felipe Andreoli (baixo), Fabio Lione (voz), Bruno Valverde (bateria) e Marcelo Barbosa (guitarra), no show que começou pontualmente com o Angra renascido de “Newborn Me” e foi direto para “Nothing to Say” e “Angels Cry”. “Essa noite vamos tocar um monte de músicas”, anunciou o italiano mais brasileiro do metal nacional, antes de “Travellers of Time”, do álbum mais recente (por enquanto) “Omni”. E pediu para que todos cantassem com ele em “Lisbon”.

Enquanto os céus caiam (na música), todos os braços no ar, talvez para receber o céu, ou a chuva (que já não vem mais nessa época do ano) no Armazém escaldante. As belas “Ego Painted Gray” e “Late Redemption” deram continuidade ao show, mas a que foi recebida com mais gritos foi a mais “teveuniãonica” da noite, “Rebirth”, cantada a plenos pulmões pelo público delirante.  Depois do sublime “renascimento de um homem”, vem a trovoada “Winds of Destination”. Faltou só o Hansi Kursch aparecer ali de surpresa para ficar mais magnífica. Mas, eu deliro.
Depois da bonita “Lease of Life”, Rafael encarna a Sandy (ex …&Jr), enquanto Leone faz a Alissa (White-Guss) e o… Leone. Ao fim, fica regendo o público. Segredo aqui, ok? É artifício para que o palco seja preparado para o vindouro set acústico.
Funciona.
O povo gosta.
Fotos: Rubens Rodrigues

Abrindo a parte mais intimista do show, Rafael declara: “Esse é um momento de celebração. Vocês tão celebrando com a gente 30 anos do lançamento do “Angels Cry”, em novembro de 93. E em novembro deste ano, lançaremos o nosso novo album. É o encontro do passado com futuro. E como já faz parte da tradição cantar uma música com vocês e vocês vão me ajudar aqui. Essa e a primeira música que gravamos”. É “Reaching Horizons”, apenas com Rafael, seu violão e o público. Somente.

Ele continua: “Para mim é uma honra estar na terceira geração dessa banda, tenho muito orgulho. É também uma homenagem a um cara que já foi para outra dimensão, então vou chamar o Fábio, que é o maior vocalista da atualidade para prestar uma homenagem ao André Matos. Os dois (e as palmas do público) cantam “Make Believe”.
Desculpa, Fábio, eu digo, parabéns pela homenagem, mas tinha coisas que só o Dedé era capaz de fazer. E eu quero que cortem três braços meus se metade do Armazém não tiver chorado nessa hora.
A banda volta com “Waiting Silence” e “Bleeding Heart”. E quem falar em Calcinha Preta, eu mato. Se você não entendeu, parabéns (sem ironia, parabéns mesmo).
Fotos: Rubens Rodrigues

“Magic Mirror”, sob os brados “Olá olá / Olê Olá / Angra / Angra” fecha (de mentirinha) o show, que continua com o tradicional bis com os clássicos “Carry On” e “Nova Era”, que, descobertos por gente que nasceu em 2010 inauguram uma nova geração de fãs da maior banda de “metal melódico” tupiniquim.

Sábado
O segundo dia de festival começou apresentando a banda local CONTE!, banda de metal alternativo/post-grunge formada em 2019. Agora formada por Lucy Benício (Vocal), Matheus Campos (Backing Vocal e Guitarra), Lucas Mesquita (Guitarra), Adailton Pereira (Baixo) e Paulo Aguiar (Bateria), a banda já lançou um álbum nos serviços de streaming chamado “A Venda” (com Chris Almeida nos vocais). Seu nome faz um convite: conte a sua história.
Foto: Victor Rasga

Então, vamos lá. Vamos contar a história da Conte! no Metal Weekend começando afirmando que o show, assim como na noite anterior, teve início anglicanamente no horário. Cada canção da banda parece que vai começar pesada, mantém um certo peso, mas acaba se transformando num hard rock como se a Pitty tivesse guitarristas que gostam de solar. Também apresentaram duas canções inéditas e tiveram a participação de um violinista em uma delas (Roberto Jr.).

Interessante é notar que a banda, cujas letras vão e voltam ao mesmo tema, foca bastante na saúde mental, passeando por temas relacionados como depressão, isolamento e ansiedade. Eles têm um projeto de combate ao dito “mal do século” (deste, do anterior, do próximo?), “#hashtag conte a sua história. Aí entendemos a insistência das letras em “dificuldade de respirar”. Interessante.
Lucy, que ainda precisa melhorar na presença de palco (muito mais preocupada com emitir a voz da forma correta a todo instante) ganhava mais palmas da galera quando metia uns gritos, porque o que o povo ali queria era exatamente isso. Quando ela grita ganha o pessoal.
A despeito de solos bacanas, alguns screams bem executados, guturais do baixista aqui e ali e até uma rendição pesada de um trecho de “Sweet Dreams”, do EURITHMICS, a banda soou um tanto deslocada em meio às demais atrações. Talvez estivessem mais bem posicionados na noite anterior. Mas, festival é isso. É também oportunidade de entrar em contato com um som diferente. E cabe a cada um decidir se gostou ou não.
Corja!
Foto: Victor Rasga

A bandeira arco-íris LGBTQIAP+ aguarda a próxima banda. E quando Haru Caje e seus amigos sobem ao palco é que o pessoal fica feliz. Quem nunca ouviu falar da Corja logo fica com a mandíbula no chão com o peso descomunal da voz da tatuadora. “Alter Ego”, “O Jogo” (a da risadinha) e “Insulto” botam o Armazém no chão (onde já estavam todas aquelas mandíbulas que mencionei).

“Hoje é mais um sonho para a gente, tocar no mesmo palco da Sepultura, influência para todo mundo”, diz a vocalista antes de engatar uma sequência de três músicas novas: “Segunda Pele”, “Algozes” e “Delusion” (em inglês, o que talvez indique que o segundo filho da Corja! pode falar a língua de Shakespeare).
Foto: Victor Rasga

Haru é a dona do palco. Toma conta de cada centímetro, mas permitindo que seus companheiros de banda ocupem também. Generosamente, com a generosidade magnânima que só aqueles acostumados há muito à realeza sabem ter

Diante de tantas palmas, a gigante ameaça desabar ao fazer seus agradecimentos. “Eu não vou continuar, senão eu choro”. E continua o coro com o nome de uma das novas bandas cearenses que mais tem feito sucesso nas terras sudestinas (a outra é a DAMN YOUTH), deixando claro que o Nordeste, em especial nosso Ceará, é um berço de criação e inovação musical também quando se fala em música pesada.
Foto: Victor Rasga

Helder Jackson (guitarra), Pedro Felipe (baixo) e Silvio Romero (bateria) são parte do conjunto, do todo, do som cheio de groove, riffs e peso, gostoso de ouvir, como uma versão brasileira, com vocais femininos, do LAMB OF GOD, cordeiro de deus, ovelha negra da família. E “Donos das Nações” é outro som novo.  A bateria é nada mais que um passeio de velocípede no parque, mas um parque prestes a explodir. Saíram do palco ovacionados.

Sepultura
Enfim, chegamos na conclusão do festival. E assim como na noite anterior, uma banda brasileira cultuada mundo afora e, coincidentemente, com um vocalista gringo.
E negro.
E se Fabio Lione, loiro, cabeludo, branco, jamais passaria por problema algum para entrar onde quer que desejasse em nosso país, qualquer Zara ou ruela na Comunidade do Oitão Preto, nosso racismo velado, nosso racismo não dito, nosso racismo não declarado, nosso racismo mentido ainda é capaz de produzir cenas ignóbeis, desprezíveis, tristes, vergonhosas relacionadas a Derrick Green, não porque sejamos as tais “viúvas do Max”, mas pela cor da epiderme do Ohioano, embora seu coração seja da mesma cor que o nosso, suas vísceras sejam da mesma cor que as nossas, seu sangue seja vermelho, como o meu, o teu e o de Fabio Tordiglione e o de Derrick Leon Green. E o do próprio racista.
Foto: Victor Rasga

Exatamente na hora marcada, a banda de Heavy Metal brasileira mais conhecida mundo afora sobe ao palco. Os veteranos Paulo Jr. (baixo) e Andreas Kisser (guitarra), ao lado do também veterano (claro, já viu há quanto tempo ele está na banda?) Derrick Green e de quem a gente também não pode chamar de novato Eloy Casagrande (bateria) encontraram um Armazém também lotado. Podemos dizer que não tanto quanto na noite anterior, é fato, mas veríamos que ficaria bem mais apertado com o mosh comendo de esmola na área central. Quem apostou que pelo menos um dia do festival poderia não alcançar uma boa quantidade de público (seja porque o “metal melódico” da banda paulista fosse mais popular, ou porque as pessoas não teriam dinheiro para ingressos em dois dias seguidos) apenas caiu do cavalo. O Armazém lotou sim.

Começando com “Isolation” e passando pelo imperdível mosh em “Territory” o Sepultura moeu o público com a mesma piedade que Casagrande atacava seu instrumento. Nenhuma.
Foto: Victor Rasga
E atenção. Não entrar na roda em “Territory” é pecado mortal. Deus castiga.
Ora num tashão clássico, ora num som mais puxado pro Death, o quarteto foi despejando os seus clássicos e canções novas do já muito conhecido “Quadra”.
No ponto de virada, “Kairos”, Andreas assume a posição de porta-voz da banda. “Sensacional voltar ao Ceará, depois de pandemia, tocar essas músicas novas…”  Disse até que o mosh tava legal, mas meio tímido. Tá louco, Andreas? Tem quem fale que ele não percebeu que nessa hora, entre o bar e uma das bandas de merchan estava acontecendo um mosh um tanto diferente.
Sim. Um sujeito cujo nome ainda não ficamos sabendo estava procurando uma massagem de graça e o povo cearense, como gosta de ajudar todo mundo, não negou o favor. O fato está sendo investigado, tomou páginas de sites Brasil afora e um vídeo que circulou em redes sociais e grupos de Whatsapp acabou chegando às telas de noticiários da TV. Se for confirmado que o camarada fez gestos nazistas e disse que “banda com vocalista negro não é banda”, nós do Headbangers Brasil esperamos que ele ganhe uns bons dias de “ferias” pra repensar a vida. Na penitenciária ele não precisará se preocupar com quem canta nas bandas de metal. Racismo é crime. E nojento. Apologia ao nazismo também. Mais sobre isso não falaremos.
Foto: Victor Rasga

O show segue com “Propaganda” e mais uma do “Quadra”, uma homenagem ao “humilde ser humano que foi Mohamed Ali”. Essas foram as palavras de Andreas antes de “Ali”. Merecida homenagem, mas surpreendeu que nenhuma palavra foi dita sobre Vânia Cavalera, que partira naquela mesma semana (mesmo com os desentendimentos entre membros e ex-membros da banda, a “mãe” do metal brasileiro merecia), nem tampouco à sua esposa, que faleceu pouco tempo atrás.

“Cut Throat” e “Dead Embrionic Cells” põe mais fervura na água, mas a festa dá uma breve pausa enquanto um violão é colocado pra Andreas iniciar “Guardians of Earth”, que antecede “Machine Messiah” e “Infected Voice”. Na faixa título do álbum anterior e em “Agony of Defeat”, Derrick mostra que sua voz não é só potência e raiva, mas também dotada de muito poder de emocionar. 
“Sepultura, Sepultura, Sepultura” grita o público. “Refuse/Resist” e “Arise”, é como agradece a banda, só pra que, novamente o público brade “Sepultura, Sepultura, Sepultura”.
Foto: Victor Rasga

No bis, “Todo mundo feliz? Todo mundo satisfeito? Vocês querem mais?”. Claro que sim. Não dá pra ir pra casa sem estourar tímpanos e pulmões gritando “Roooooots, bloody rooooooooooooooots”. Ainda mais depois de dois dias de som, iluminação e shows perfeitos. E todo mundo voltou pra casa feliz, satisfeito e, querendo mais. Ouviram, D Music? 2024 tem que ter outra edição desse festival.

Só o rapaz que quis ser protagonista do evento que não deve aparecer, pois, provavelmente, ele vai passar um bom tempo longe de shows (e qualquer outro evento, porque, cadeia não é brincadeira, né?).
Agradecimentos:
D Music Transformação Musical, Maurílio Fernandes, Denor Sousa e Vitor Siqueira, pela atenção e credenciamento.
Rubens Rodrigues e Victor Raaaaasga, pelas imagens que ilustram essa matéria. Confira todas nas galerias abaixo.
Shows da sexta (todas as fotos por Rubens Rodrigues):

Shows de sábado (todas as fotos por Victor Rasga):