Já não é de hoje que um talento extraordinário ou incomum é associado às forças ocultas. Desde 1702, o intervalo conhecido como Trítono (ou5b) era mal visto e os compositores que insistiam em usá-lo eram repreendidos e acusados de pacto com o tinhoso. Anos mais tarde, já nos primórdios do blues, um tal Robert Johnson foi acusado de ter recebido das mãos do próprio cramulhão um violão afinado especialmente para ele e a partir daí fez sucesso e ganhou fama e dinheiro, por conta de um suposto pacto com o demo. Nem mesmo os Beatles com seus cabelos engomadinhos e visual de boyband escaparam da acusação de satanismo, crença potencializada pelo fato do serial killer Charles Manson ter batizado sua seita de Helter Skelter, música gravada pelos fabfour em 1968 no famoso álbum branco. O líder da seita dizia receber mensagens ocultas por meio dos discos dos caras juntamente com seus fanáticos seguidores. Com o surgimento do Deep Purple em 1968 e do Led Zeppelin em 1969, o som mais pesado já mostrava a que veio: incomodar os conservadores e povoar o imaginário da molecada que se aprofundava em literatura pagã e medieval graças a trupe de Jimmy Page e companhia.

Suas referências literárias e influências folk, somadas à algumas atitudes no mínimo suspeitas (como comprar uma mansão às margens do Lago Ness que pertenceu ao satanista mais famoso, o mago Aleister Crowley) tornavam a aura ao redor do Zeppelin ainda mais sombria e mística. A coisa piorou ainda mais quando o Black Sabbath soltou seu primeiro disco, em 1970. A faixa título estava lá, com o intervalo maldito sendo usado num ritmo dark, lento e lúgubre, casando perfeitamente com o vocal fantasmagórico de Ozzy, numa interpretação assustadora que realmente parece tirada de um ritual de pacto com o demônio. Apesar desse tema (diabo) não ser bem uma novidade, já que os Stones haviam lançado seu clássico Sympathy For The Devil em 1968 no álbum Beggar’s Banquet, o Sabbath elevou a coisa a um nível estratosférico, inclusive nos álbuns seguintes. Tidos como os pais do Heavy Metal, não demorou muito pra que o próprio estilo fosse demonizado por completo. As bandas, aproveitaram a onda e se aprofundaram nos temas obscuros, que encontravam aceitação e admiração em  uma juventude cada vez mais reprimida e criticada. Paralelamente no Brasil, em 1975, Raul Seixas, sempre muito antenado, também se aproveitou da situação e lançou o disco Novo Aeon, que continha a polêmica música Rock Do Diabo onde afirmava que o diabo era pai do rock, pra desespero da sociedade careta e conservadora da época da ditadura. Nem parecia que o rock n’ roll havia sido “inventado” por Sister Rosetta Tharpe, uma guitarrista gospel, lá nos anos 30. Claro que a própria Rosetta causou polêmica ao ser a primeira artista a colocar distorção numa guitarra elétrica dentro de uma igreja, o que mostra que o conservadorismo atacava e repreendia independente da mensagem lírica passada, fosse em I Shall Know Him de Mrs Tharpe ou Me And The Devil Blues de Robert Johnson.

Na efervescente cena metal do final dos anos 70 e início dos anos 80 surgiam mais bandas que reforçavam a imagem satânica junto a sociedade, seja com discos como The Number Of The Beast do Iron Maiden ou álbuns que nada tinham a ver com o satanismo como Rocka Rolla do Judas Priest. Grupos como o Kiss eram massacrados constantemente por conta do visual agressivo e da música barulhenta. Com tantas evidências de que o Heavy Metal era algo demoníaco, a igreja logo começou a divulgar informações que reforçavam essas acusações e fazer campanhas para que o ritmo fosse banido e até mesmo criminalizado, o que fez com que ainda mais bandas surgissem e as bandas já existentes ganhassem status ainda mais elevados a nível mundial. Em contra partida, no início dos anos 70, músicos cristãos, recusando-se a deixar para o chifrudo os direitos autorais do estilo que os conquistava, resolveram usar seus dons para repassarem mensagens positivas e celestiais. Enquanto bandas chave como a tríade (ou trítono se preferir) Purple, Zeppelin e Sabbath davam sua contribuição para o lado negro, do outro lado tínhamos Ressurrection Band, Messiah Prophet, Jerusalem, entre outras, que pavimentaram o caminho para o surgimento de bandas como Stryper, Bride, Whitecross, Bloodgood e outras mais extremas como Mortification, Tourniquet e Theocracy, por exemplo.

Aqui a mensagem era de paz, mas também de guerra espiritual, salvação e condenação (das obras demoníacas) e o contraste entre a luz e as trevas. Lógico que nenhuma dessas bandas alcançou o nível de sucesso de um Iron ou Sabbath, mas estavam lá levantando a bandeira da luz, e combatendo o mal, ainda que igualmente criticados pelos cristãos conservadores. No Brasil, como de costume, não era muito diferente. Bandas como Rebanhão e Katsbarnéa provocavam a ira de pastores renomados que chegavam a proibir jovens cristãos de suas igrejas de escutar essas bandas, sob pena de ficarem em disciplina (parte da liturgia de algumas igrejas que permite ao pastor retirar de suas atividades eclesiásticas qualquer membro que seja considerado culpado de algum delito e esteja atuante na congregação). A partir daí, com o surgimento do Resgate, Oficina G3, Fruto Sagrado, Novo Som, Catedral, entre outras, mais polêmicas viriam, mas a mudança era irreversível visto que mais e mais bandas surgiram e surgem no segmento gospel, tocando sons cada vez mais pesados.

Uma prova de que a mudança veio pra ficar foi a recente declaração do Pastor Alexandre Gonçalves, fã declarado de (pasmem!) bandas como Crypta, Torture Squad, Korzus, Angra, etc. Em entrevista à Folha de São Paulo o religioso disse:

“Diferentemente do culto de liturgia rígida e com som baixo, sendo eu pentecostal, acostumei-me ao culto mais espontâneo e livre, com som mais alto e onde se pode pular e até correr pela igreja. Talvez por isso, minhas referências musicais sejam outras. Desde o chamado power metal do Angra, passando pelo thrash metal do Korzus e indo até o death metal do Torture Squad, para falar apenas de bandas nacionais.” (link do site do Igor Miranda para entenderem mais sobre.)

O pastor mantém ainda um canal no Youtube (https://www.youtube.com/@Rev_Metal) ao lado de outros 3 pastores onde analisam letras de bandas como Draconian e também falam de temas interessantes como: “ Ouvir Heavy Metal escandaliza, segundo a Bíblia?” entre outros temas pertinentes a quem vive se perguntando sobre a influência do Metal em sua vida cristã.

Lógico que a opinião do pastor provocou controvérsias. Uns concordam, outros discordam de forma contundente, tem os que acham curioso o fato de um pastor ouvir, curtir e defender o estilo e algumas bandas. É claro que nem a opinião do pastor, do papa, de Raul Seixas ou da irmã do coque pode ser tratada como verdade absoluta, porém é fato que o respeito deve permanecer em todas as esferas, e é justamente isso que faz Michael Sweet do Stryper ser respeitado inclusive por músicos de Black Metal. O mesmo respeito que faz Nicko Mcbrain tocar no Iron Maiden mesmo sendo cristão e Alice Cooper se manter na ativa lançando álbuns com temáticas relacionadas ao terror independente de sua fé.

Entre músicos e admiradores do estilo, a opinião é bem diversificada. Marllon Matos (assessor de imprensa da Lex Metalis e da En Hakkore Records) afirma: “Poucas coisas são mais Heavy Metal que a Bíblia.Por mais que nela a gente encontre o guia de fé e prática de mais de 2 bilhões de pessoas no mundo e todo o imaginário espiritual, também encontramos registros e passagens históricas repletas de caos, articulações, corrupção e falha do ser humano de modo geral.  Não muito diferente de muito dos temas que encontramos em diversas composições por ai, certo? Costumo dizer que “a criação ecoa o Criador”, que significa que tudo em maior ou menor grau transmite parte dos ensinamentos de Deus e isso é bem visível na arte – e no Heavy Metal. Usar de letras para se trazer o debate, estudo e pensamento é algo extremamente louvável e tomando por exemplo o caso da letra do Slayer, usar o ponto de vista de alguém descrente nos faz meditar e procurar entender o motivo de tal pensamento e revolta, além de ser um convite para buscar uma maneira de mostrar o ponto de vista cristão sobre o tópico em questão de uma forma valorosa, honesta e respeitosa.”

Essa opinião pelo visto é compartilhada por David Reece (ex Accept e Bangalore Choir) que diz: “Eu diria que sou fã de letras positivas e se há um tema cristão eu apoio. Não sou fã de letras satânicas porque acho que rock’n’roll não tem a ver com satanismo. Na minha opinião é algo para animar a todos. para tornar o mundo um lugar melhor.”

Músicos cristãos como Milton Jorge, guitarrista do Sinal de Alerta, por sua vez defende que as características pessoais de cada um devem ser respeitadas, mesmo depois que a pessoa se converteu: “Se a pessoa vem do mundão e recebe a Cristo como seu salvador, sendo músico e admirador de heavy metal, você acha que ele fará o que? A pessoa vai produzir aquilo que ela gosta, aquilo que faz parte da sua formação, da mesma forma o cara que curte sons mais extremos, vai reverenciar a Deus da maneira que gosta e está mais familiarizado.” Ele continua: “ Eu continuo ouvindo as bandas dos anos 70, e se eu disser que não ouço estarei mentindo para você, pra mim mesmo e principalmente a Deus. Ouço até hoje King Crimson, Gentle Giant, Yes, Uriah Heep, Deep Purple. Ouvir pra extrair algo de bom pra acrescentar em sua música é válido. Nesse mundo ninguém é 100% original. Mesmo na época em que eu comecei, as músicas que tocavam na igreja eram uma espécie de guarânia e já eram inspiradas em artistas seculares do segmento sertanejo. Ninguém fez sua música do nada, sempre há uma inspiração. Se a música te inspira a dar um teco, a beber, e praticar outras coisas que não condizem com a vida cristã, aí você deve repensar. Mas se é pra que você encontre um timbre, se inspire num riff, não vejo problema em escutar o estilo.”

Pedro Bracconot, tecladista e um dos fundadores do Rebanhão admite não ouvir muito heavy metal, mas respeita o estilo, pois há muitos músicos sérios fazendo um trabalho de qualidade, especialmente no meio evangélico, a exemplo da banda Torquetto que recentemente lançou o vídeo clipe da música Unbound, um hard/heavy que lembra muito o Extreme de Nuno Bettencourt.

Em minha opinião, como músico cristão, que ama rock n’ roll, aor, heavy metal e afins, a letra deve ser levada em conta sim. Porém, isso não é uma regra, uma imposição e nem deve ser, visto que o próprio Jesus chamou seus discípulos, mas respeitou a todos que não quiseram segui-lo, mesmo que não concordassem com o caráter salvífico de sua mensagem. Por outro lado, o mesmo Jesus foi crucificado por aqueles que não concordavam com a sua mensagem, num claro exemplo de intolerância religiosa já nos primórdios. Abaixo deixo uma lista pros leitores do site conhecerem um pouco mais do que é o White Metal ou Metal Cristão. Então deixe o preconceito de lado. Se as letras te incomodam, saiba que nem o satanismo escancarado em algumas letras do estilo fez um pastor pentecostal desistir daquilo que ele considerava musicalmente bom. Se um pastor pentecostal pode ter a mente aberta e ouvir Slayer, você também consegue sair da bolha e curtir um instrumental bem feito mesmo com letras positivas e mensagens de esperança.

TEXTO POR DIOGO FRANCO