O Viper fez uma publicação em sua conta oficial do Facebook em homenagem a data de hoje, um ano da morte de Andre Matos. A longa postagem também trouxe uma faixa nova, regravada com os vocais de Andre é “The Spreading Soul Forever” fez parte de “Evolution“, primeiro disco lançado após a saída do vocalista e originalmente cantada por Pit Passarell. Confira o comunicado e em seguida a faixa. 

Querido Dedé,

o tempo é uma coisa engraçada. Na teoria ele parece sempre lógico, hora após hora, dia após dia, mês após mês. Mas isso é só na teoria, mesmo. Na nossa cabeça ele faz curvas inexplicáveis, dança para lá e para cá ao sabor de um vento que muda de direção a todo momento. Uma lembrança que aconteceu há décadas parece ontem; um fato que aconteceu há uma semana já nem existe de tão distante.

Hoje faz um ano que você morreu. Quando eu digo isso para as pessoas, muita gente me diz “um ano, já?” ou “o tempo voa”, quase um insulto de tão clichê. Insinuam que passou rápido, foi outro dia. Não tenho certeza. Aconteceram tantas coisas desde então que tenho a impressão de que 8 de junho de 2019 se passou há uma eternidade. Em outra vida, talvez, outro mundo, onde os relógios são loucos e a memória, traiçoeira.

Ninguém entendeu sua morte. A maioria das mortes vêm em um susto, mas a sua não fez sentido. Ainda não faz. Eu estava na praia, na casa do Quintino, quando uns jornalistas começaram a me ligar para confirmar se aquilo era ou não verdade. Na primeira vez eu nem liguei muito, achei que era ‘fake news’, fofoca. Quando o segundo jornalista ligou, no entanto, senti um arrepio que percorreu minha alma dos pés à cabeça.

Foi um calafrio, uma sensação ruim, como uma rajada de vento que entra sem avisar pela fresta da janela. Comecei a ligar para todo mundo, até que o Hugo me confirmou. Não fazia sentido, mas, ao mesmo tempo, reconheço que poucas vezes a morte faz. Comecei a chorar, estava com a Bebel, ela me perguntou o que tinha acontecido. “Tio Andre morreu”, eu contei. E não acreditei no som das minhas próprias palavras.

O que veio depois foi ladeira abaixo. Muitas homenagens, todas respeitosamente merecidas. A cada uma, eu sentia a sensação de estar prestando um tributo a você, a quem você foi, mas ao mesmo tempo vinha uma solidão imensa. Isso acontecia, acho, porque seu nome era pronunciado tantas, tantas vezes, mas em nenhum daqueles momentos ele vinha acompanhado da sua voz nem da sua imagem do meu lado direito no palco.

Foi uma catarse, mas extremamente ambígua, porque fiquei muito feliz ao ver o amor que o público tinha por você, mas triste por saber que quando o último acorde daquelas homenagens soasse, a realidade voltaria a se impor. E ela era uma só: você não estava mais aqui.

Muito estranho tudo isso. Nunca imaginei que você seria o primeiro de nós a ir embora. Nunca imaginei, na verdade, que nenhum de nós pudesse morrer. Na minha cabeça, sempre fomos imortais. Sempre nos considerei invencíveis. A morte? Ela não chega para Soldados do Amanhecer. Os Cavaleiros da Destruição somos nós, estamos blindados contra as adversidades. As Asas do Mal nunca nos levariam através dos céus de maneira literal, que bobagem. Eram apenas metáforas ingênuas cantadas por adolescentes que fingiam não sentir medo dos filmes de terror exibidos na sala de TV do meu apartamento. Lembra?

Teve uma homenagem que foi marcante: no dia 13 de julho, a convite do Rafael, juntamos integrantes do VIPER, Angra e Shaman para um show na Praça da República. Ali mesmo, onde a gente comprava cintos e braceletes de couro e tachinhas de ferro vagabundo para imitar o Iron Maiden e o Black Sabbath. Se você estivesse vivo, essa reunião nunca teria acontecido. Imagina o que você diria se visse “Felipe Machado” em uma credencial do Angra? Pois aconteceu. E foi lindo. Você teve que morrer para juntar as suas três bandas no mesmo palco.

Quando tocamos “Living for the Night”, milhares de pessoas se uniram e cantaram aquela letra do Pit que você imortalizou. Foi tão alto e tão forte que achei que você ia conseguir ouvir aí no céu. No dia seguinte fizemos outro show em sua homenagem, VIPER e Shaman, e tocamos “Moonlight” em sua homenagem. A lua estava tão cheia, tão linda que achei que era você, nos olhando aí de cima. Tocamos a sua música corretamente, maestro?

Eu e o Baron planejamos uma turnê com os membros do VIPER e Shaman. A ideia era boa no papel, mas na vida real não deu muito certo. Muita gente, cada um com uma mentalidade. Todos caras muito legais, mas não foi para a frente. Fizemos apenas um lindo show em São Paulo, gravamos algumas versões de músicas antigas. A intenção foi boa, mas depois acabamos seguindo cada um o seu caminho, a gente com o Leandro; o Shaman com o Alírio. Quem sabe um dia tocamos juntos novamente? Seria o máximo.

Esse foi um resumo factual do que aconteceu no nosso mundo, mas há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar a nossa vã filosofia. A maior parte do que aconteceu, para falar a verdade, não pode ser descrito em palavras. Eu já sabia que você era amado, mas confesso que me surpreendi com o tamanho e amplitude desse sentimento. Percebi que não era apenas o amor dos fãs por seu ídolo. Havia e há algo mais, uma admiração por você como pessoa, como ser humano, muito mais profunda do que a relação entre público e artista.

Durante a missa que o Nando e o Teti organizaram pude ver a emoção das pessoas de perto. Gente que só conhecia o Andre Matos do palco, aquele famoso, me abraçava forte, como se tivessem perdido o Andre, o amigo. Difícil explicar o que senti naquele dia.

Foi a última vez que vi a Thais, do Pit, ela também se foi logo depois de você. Espero que tenham se encontrado aí em cima, manda um beijo para ela. Uma pessoa tão querida, Pit sofreu duas vezes na mesma semana, não sei como o coração dele aguentou. Tanta gente veio falar comigo naquela missa que parecia que o mundo inteiro havia crescido com a gente na Veiga Filho. Foi um híbrido de vazio, pela sua ausência, e orgulho, por ver a intensidade do amor de todos por você.

Você não foi apenas um vocalista. Você foi uma voz.

Esse sopro de harmonia que saía da sua garganta fazia as pessoa pararem para ouvir, não importa se você estivesse cantando ou falando uma das mil línguas que você falava. Havia um luto respeitoso, um carinho realmente mágico. Você mereceu e merece cada uma daquelas lágrimas. Alguns políticos oficializaram o 8 de junho como o “Dia do Heavy Metal”; uma fã batizou uma espécie de aranha com seu nome. Quando eu contei isso para o Dani, demos muita risada. Você acharia uma homenagem muito mais adequada.

Desde então muita coisa aconteceu. O Brasil andou para trás, o que não chega a ser uma surpresa. Andamos dois passos e voltamos dez, é nossa história. Assassinaram mais um negro desarmado nos Estados Unidos, protestos se espalharam por todo lugar. Infelizmente, não temos líderes no mundo, apenas bufões patéticos e ególatras. Você deve olhar para baixo e se sentir envergonhado. Eu sei, eu também me sinto.

Nada, no entanto, tem sido tão impactante quanto uma pandemia causada por um vírus novo. Você ia ficar surpreso com outra coisa: agora a realidade é uma questão de opinião. Cada um tem a sua própria verdade, já imaginou como isso está dando confusão? Nem adianta pedir, porque eu não consigo explicar como chegamos a esse ponto.

Hoje o mundo inteiro está te homenageando. O VIPER também, claro. Lembra quando você foi no estúdio do Lico ouvir o álbum ao vivo e não gostou da sua voz em “The Spreading Soul”? Lembra que você chegou a regravar um take da música? Pois o Lico recuperou os arquivos, o Gulherme organizou a regravação do instrumental. Tudo isso deu origem a “The Spreading Soul Forever”.

Você dizia que essa era uma das suas músicas favoritas, não é? Pois aqui está. Ficou linda, sua voz foi feita para ela. Nem posso falar muito porque o Pit tem ciúme. É a favorita dele, e a minha também. Mas agora não tem discussão: ela é eterna. “The Spreading Soul Forever.” Precisa ver o video que o Eco e o Anderson criaram. Sua alma se espalhando por São Paulo, assistindo a gente aqui embaixo. Chamamos o Yves, ele ficou emocionado. Nem sei por que estou te contando isso. Você estava com a gente, tenho certeza.

Há anos que passam rápido, outros que demoram um século para passar. O tempo é persistente, mas não é muito confiável. Os dias, horas e segundos são apenas números. O que conta é o tempo que corre dentro do coração, as memórias que construímos ao longo dele. Rápido ou lento, não sei em qual dos dois se encaixa esse período entre 8 de junho de 2019 e 8 de junho de 2020. O que eu sei, porém, é que foi um ano incompleto. Um ano em que tanta coisa aconteceu e, mesmo assim, um ano vazio. Que falta faz a sua voz.

Foto: Marcos Hermes
Capa: João Duarte