“Carlos Lopes fala sobre o novo álbum, Pandemia, e muito mais”

Quem não conhece a Dorsal Atlântica, banda pioneira do estilo Heavy/Thrash Metal no Brasil? Bem, se você ainda não conhece, aproveite a oportunidade para conferir a história por nós contada anteriormente. Se inteire dos fatos e nos acompanhe nesse papo rico e lúcido que batemos com o líder da banda. Nesta ocasião, falamos sobre “campanhas de financiamento coletivo”, “política”, “Brasil”, “literatura Metal”, “gosto musical” e, claro, sobre o novo álbum, que está previsto para ser lançado ainda este ano:

Headbangers Brasil: Desde 2012, quando retornou, a Dorsal tem feito uso de uma poderosa ferramenta de financiamento coletivo. O que você tem a dizer sobre o crowdfunding e suas possibilidades para os artistas de qualquer ramo e gênero?

Carlos Lopes: Esta é uma pergunta importante que preciso colocar em perspectiva. Em 2012, poucas pessoas faziam campanhas de financiamento no Brasil. E se hoje, ainda há quem não entenda, naquela época menos ainda. O que me motivou foi uma conversa que tive com uma vizinha, que havia acabado de fechar a sua agência de publicidade e que me sugeriu fazer crowdfunding, que estava “bombando” no exterior. Relutei porque o povo brasileiro não entende o que é financiar um artista. Muitos ainda querem ser referendados, seja por um selo estampado na capa ou para comprar uma calça de grife. Não há republicanismo… Como haveria o entendimento de uma campanha que se pode doar e não querer nada ganhar em troca? Então, em seguida, recebi o convite para fechar a última noite do festival MOA [Metal Open Air] no Maranhão tendo como bandas de abertura o Anthrax e o Exodus. Somei os prós e “contras”. A banda estava inativa desde 2000-2001. Eu não me interessava mais em compor e tocar metal se eu não pudesse ter carta branca. E quem a teria que dar era o público e não os selos que, por uma questão óbvia, dependem de retorno comercial. Lembrei que havia idealizado e feito o primeiro disco de metal carioca em 1984. Lembrei que o público, 35 mil pessoas haviam assinado para que a Dorsal tocasse no festival Monsters of Rock em 1997 (o que só aconteceu um ano depois) e achei que poderia começar algo novo no Brasil, ou simplesmente continuar com a minha filosofia de vida, que é consciencial. Agora, sobre aconselhar, eu diria que é preciso ter uma base sólida de possíveis apoiadores. É um trabalho que exige dedicação 24 horas. Não é apenas abrir uma campanha e esperar que o financiamento caia do céu.

HB: Hoje, como sabemos, o crowdfunding do álbum Pandemia foi muito bem sucedido. Houve algum momento em que você tenha duvidado do êxito da campanha?

CL: Como sempre é bom não ter verdades absolutas, também é saudável saber que a vida é ganho e perda, acertos e erros. Quem começa uma história tendo certeza que tudo sairá às mil maravilhas cai no autoengano. É importante “tirar o cavalo da chuva” e trabalhar. Muito. Antes de tomar a decisão de entrar em mais uma campanha, a quarta em 8 anos, refleti muito e decidi que deveria ser feito, porque tenho a convicção que eu ainda posso contribuir para o “progresso” da forma de pensar e de criar arte e música. Como uma pessoa com quase 60 anos pode ter a cabeça mais aberta do que a maioria da população? Eu me faço essa pergunta o tempo inteiro. E por isso acredito no que faço, e no que crio. A vitória da campanha, que é coletiva, referenda que há espaço para a diferença, pois o metal e o punk se tornaram convencionais, saudosistas e conservadores, tudo ao contrário que sonhei em 1981. E para parabolizar, quando um humanista se senta na mesa com 5 nazistas, o resultado será 6 nazistas. Quando os bons se ausentam, os maus tomam conta.

HB: As “lives” foram importantes para a divulgação da campanha do crowdfunding, mas depois de alguns meses, já dão sinal de desgaste. Como você percebe esse fenômeno daqui pra frente?

CL: Quando a campanha teve início, nem Instagram eu tinha. Amigos me incentivaram a instalar porque muitas lives são feitas através dessa plataforma. E eles tinham razão. Ou seja, eu tive que me adaptar. Relutei anos para ter um celular, um smart, e até mesmo instalar o zap porque eu não gosto de celular, mas fui “obrigado” pelas circunstâncias. Não fico online direto e acho engraçado quando alguém me escreve e quando eu não respondo, recebo em seguida um ponto de interrogação! Eu ainda estou refletindo sobre os dados da campanha (o número de apoiadores por estado, a idade, se já participaram de crowdfundings, etc) mas as lives foram fundamentais para a vitória, assim como um trabalho diário no qual eu falei com 50 apoiadores por dia durante 3 meses. Houve dias que enfrentei 3 lives diárias. No final da campanha eu já estava desgastado fisicamente e mentalmente. Não sei o que será das lives, assim como não sei o que será do mundo, mas também, e tristemente, descobri que 90% das lives de metal, “classic” rock e afins são de bandas cover. Tenho amigos que tocam em bandas cover, mas eu sou um autor autoral e construí minha carreira assim. Talvez, essa quantidade de covers explique o conservadorismo do rock.

HB: Em que momento da pandemia você sentiu que era a hora certa pra gravar um novo álbum?

CL: A resposta verdadeira não é convencional: recebi indicação espiritual de fazê-lo.

HB: Pandemia, o álbum, versa sobre um vírus que contamina a população de um “país fictício” deixando as pessoas ignorantes. Sabemos que se trata de um paralelo com a realidade brasileira e à propósito disto, o que você acha de artistas subversivos no passado, mas que hoje se revelam conservadores em sintonia com o discurso do atual governo brasileiro?

CL: O artista não é um ser perfeito, acima dos outros. É humano com todas as qualidades, defeitos e parcialidades. Veja o caso dos Youtubers que incentivam as crianças à competitividade, e que só falam em dinheiro… Li alguns estudos sobre a violência dos jogos e se afeta ou não as crianças. Gosto de estudar sobre os casos. Não saio atirando apenas com opiniões. Atrás de muitas críticas contra as “minorias” (que são a maioria) há racismo e preconceito. Antes velados e agora, não. Atrás de críticas contra Jesus e as religiões há apenas outra religião: a do ego e do ódio. Tudo é luta pelo poder, projeção. Tenho como política há décadas tratar a todos com respeito, mesmo que se mostrem reacionários e mal-educados. E quando não há mais diálogo, cada um vai para o seu quadrado, para viver em suas bolhas. E que cada um escreva as suas “verdades” em seus discos. E sobre o governo atual, não há governo, só há entendimento de que pularei essa fase da minha vida e memória. Mas isso não apaga os votos de 50 milhões no negacionismo, o que explica bem mais sobre o Brasil do qual gostaríamos de acreditar.


HB: Da ideia original do novo álbum até o momento presente, muitas águas rolaram e, com o trabalho de composição e arranjos sendo efetivamente realizado, é possível que o enredo tenha sofrido alguma alteração. Você pode nos adiantar algo sobre o andamento dos trabalhos?

CL: O enredo está sendo acrescido de novas ideias a cada instante sem alterar o cerne da história. Mas o mais importante são as composições. Eu descarto 90% do que escrevo se me lembra algo que já fiz. Procuro o tempo inteiro a criação de uma música pesada brasileira baseada na música armorial, na umbanda e no candomblé. E assim prossigo com a “tradição” da banda e da minha história pessoal que é ousar. Eu imaginava que pudéssemos gravar em outubro, mas isso se mostrou fora da realidade. Tivemos problemas logo que a campanha se mostrou vitoriosa. Pessoas pediram mais 50% dos valores que havíamos acordado antes do crowdfunding. Ou seja, isso afetou o orçamento e agora é engenharia de saber de onde tirar para colocar e ir cobrindo os buracos. Hoje, é claro para mim, que se tivéssemos atingido a meta exata, e não recebido mais apoios como ocorreu, não conseguiríamos fazer o disco como gostaríamos.


HB: Uma trajetória de quase 40 anos e cheia de simbolismos não pode ser ignorada. Tendo consciência disso, você se sentiu confiante para realizar projetos cada vez mais ambiciosos. Nesse sentido, 1) gravar um disco hoje está mais fácil do que na época do Antes do Fim? 2) Se sim, por que não gravar um álbum por ano?

CL: Não há como comparar épocas no tempo-espaço. Cada grau de dificuldade dentro do próprio contexto. O disco não deveria sofrer a pressão de ser lançado a cada ano, apenas se o material for bom o suficiente. É assim que sempre conduzi minha carreira. O que faço hoje é o que sempre fiz: me recusar a aceitar que eu não poderia criar, mesmo que não houvesse público, entendimento ou apoio. Me disseram em 1981 que era ridículo tocar rock; me disseram em 1984 que nunca daria certo organizar um disco de rock pesado; me disseram em 1986 que eu tocava apenas barulho; me disseram em 1987 que eu era louco de compor um disco como o Dividir e Conquistar; os produtores começaram a cobrar na década de 1990 para a abertura de shows internacionais e me tiraram do mercado mas mesmo assim prossegui; a própria banda desacreditou na gravação do disco Straight na Inglaterra em 1996; bandas “amigas” me prejudicaram nos bastidores e eu prossegui; fundei as bandas Mustang e Usina Le Blond na década de 2000 para me reescrever e me disseram que eu estava destruindo a Dorsal; me disseram que eu nunca deveria gravar um disco sem gravadoras em 2000; me escreveram em 2012 dizendo que eu estava destruindo o metal ao pedir financiamento; em 2018 me escreveram dizendo que queimariam meus discos por eu ser “comunista” e por fim um conhecido, editor de uma revista, me escreveu dizendo que não apoiaria e nem promoveria a campanha do Pandemia em 2020 por eu ser “sabidamente uma pessoa de posses”.


HB: Mudando um pouco de assunto: Depois do álbum Canudos, muitas outras bandas começaram a resgatar a história do Brasil, criando uma espécie de Folk Metal genuinamente brasileiro. 1) O que você acha disso? 2) Se sente responsável, de alguma forma, por haver dado um “start” nisso tudo?

CL: Não me sinto responsável, não. Talvez como escreveram Seixas e Coelho eu apenas “dei os toques!” O que escrevo e componho hoje é a soma da experiência de vida, e da compreensão do que pode ser feito. Eu não ouço e sinto música como antes, essa é a tendência natural do corpo e da mente e é natural que seja assim. Hoje, com a maturidade suficiente, e talvez impulsionado a isso por nunca ter tido “sucesso” comercial, entendi que o meu papel é ajudar na construção de uma música pesada nacional com elementos locais sem tutelagem de gringo. Não criar uma coisa “folclórica” – e inclusive para gringo – mas uma arte enraizada na cultura consciente e inconsciente. Um tropicalismo pesado e antropofágico. Assim como na música, nos quadrinhos e nos livros. Há um dado interessante que gostaria de acrescentar: no Rio entre 1984 e 1986 mais da metade do nosso público era negro ou mulato e quando fomos tocar em SP no mesmo período, não vi um negro nas plateias…


HB: Nós da imprensa especializada temos a percepção de que muitas bandas novas começam já tentando emular o espírito dos anos 80, mas acabam mudando de identidade ao longo do tempo. 1) Como você percebe essa tentativa de resgatar uma essência não vivida? 2) O que você acha que uma banda jovem deveria/poderia fazer para manter esse espírito vivo na tentativa de construir uma personalidade própria?

CL: Entendo a pressão e influência do mercado estrangeiro no Brasil e em países “periféricos”. Não há como negar. Mas é possível bloquear essa influência desde que haja uma conversão mental e ideológica. E quando isso acontece, percebe-se o quanto é tolo não ser brasileiro, o quanto é desnecessário ser globalizado. E o quanto é alienado ser saudosista. Uma coisa é tropicalizar e “antropofagojizar” o elemento estrangeiro, outra é submeter-se a ele. Por que eu teria que aconselhar jovens quando eles têm a força da juventude ao seu lado? Quando têm a possibilidade da revolução e nada fazem? Evo Morales, presidente eleito da Bolívia, foi deposto por bolivianos que odeiam os indígenas e segundo palavras de Elon Musk, CEO da Tesla, “derrubará qualquer um, em qualquer país, quando quiser.”


HB: Ao longo de sua trajetória, a Dorsal viajou os 4 cantos do país tendo criado laços distintos com as bandas de cada região. Como líder da banda, 1) como é sua relação com as bandas do Nordeste (o entrevistador é cearense) e 2) você poderia nos contar algum fato marcante ou destacar alguma banda da cena metálica nordestina?

CL: Minha mãe era de Olinda, Pernambuco. Metade do meu sangue e consciência são nordestinas. Quando tocamos pela primeira vez na região, creio que no Piauí, no final da década de 1980, o equipamento era escasso, problemas de produção, mas o público apaixonado. Com o tempo os eventos melhoraram nos anos 1990, mas sempre houve ganhos e perdas, bons e maus empresários em qualquer lugar. Como tomamos volta em São Paulo, tomamos na Bahia. Faz parte… Eu gostava mais do rock pesado no início do movimento quando cada banda tinha mais personalidade, o que veio a ser perdido no final da década de 1980 quando os padrões e rótulos tomaram conta. lembro de ter recebido no Piauí, o LP da Vênus de 1986 que gosto até hoje. Ouve-se que as guitarras foram provavelmente gravadas na linha, direto no console e mesmo assim eu ouvi a música e não me deixei “negativizar” por questões técnicas.


HB: Bem, nem todos tiveram a oportunidade de ler a biografia da banda, então, em nome de todos os fãs, indagamos se você ouve bandas/artistas fora do gênero Metal? Poderia citar um nome que tenha lhe influenciado e que causaria surpresa?

CL: Isso é fácil: Cartola, Nelson Cavaquinho, Elis Regina, James Brown, Tim Maia, Elomar, Quinteto Violado, os Tropicalistas, Novos Baianos, Secos e Molhados.


HB: Temos percebido um movimento interessante no mercado literário com relação aos de livros sobre rock e metal. Novas editoras estão surgindo e lançando livros dedicados ao público roqueiro. 1) O que você acha disso? E, aproveitando a deixa, 2) O que você acha de uma atualização do livro Guerrilha, abordando as novas fases da banda?

CL: Faz parte do crescimento da cena – e da bolha também. É importante ter material de pesquisa. Passei a vida toda lendo revistas e livros em inglês porque não havia em português. Na década de 1970, eu era leitor da revista Rock, A História e a Glória, e tudo isso se perde se não houver os abnegados a escaneá-las para preservação. A história, a análise escrita, é um retrato do momento histórico e não é uma verdade. Assim como lançam livros e bios, no exterior também lançam action figures de roqueiros. Nisso, os Beatles tiveram papel fundamental pois, se não me engano, foram os primeiros a autorizar terceirizações, como a venda de bonecos, camisetas, sapatos, roupas e de… perucas-Beatle! O Kiss só seguiu a ideia na década de 1970. Em 1964 não havia nem P.A. de som para show! O mundo mudou. Muda sempre. Em 2012, na campanha de financiamento, tentamos lançar uma série de bonecos, mas não conseguimos criá-los a um custo satisfatório. Provavelmente, a biografia Guerrilha será relançada atualizada, e a cores, no próximo ano através de campanha de financiamento.


HB: Agradecemos por sua atenção e encerramos essa entrevista abrindo espaço para uma mensagem especial de você para os fãs da banda Dorsal Atlântica:

CL: Eu que agradeço pelo interesse. Nos veremos-falaremos após o lançamento do Pandemia. E que venha 2021.

Em tempo: Além de Guitarrista, Vocalista e Compositor, Carlos é Escritor, Ilustrador, Jornalista e autor da Revista Tupinambah.

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> Agradecimento: Daniel Tavares.