Diferente de tudo, mas nem tanto

O ano de 2020 sempre será lembrado pela reviravolta causada em nossas vidas pelo COVID-19. Em uma escala global, um inimigo invisível começou a ceifar milhares de vidas e uma situação desesperadora exigia medidas imediatas. Medidas essas que variaram muito de país para país, mas na falta de um medicamento realmente confiável, o isolamento social foi o método mais simples para evitar a propagação da doença entre as pessoas. Isso iria atingir em cheio todos os setores, e regionalmente falando, o Governo de São Paulo determinou uma quarentena em todos os 645 municípios do Estado a partir do dia 24 de março. A princípio durante 15 dias, a medida decretaria o fechamento do comércio, exceto serviços essenciais de alimentação, abastecimento, saúde, bancos, limpeza e segurança. Imediatamente cessaram suas atividades as escolas em todos os níveis; empresas; escritórios, enfim, praticamente todos, de uma forma ou de outra, sentiram na pele a gravidade da situação e suas consequências.

O mundo do entretenimento, obviamente, não ficou de fora dos problemas e viu casas de shows também precisarem ser fechadas e eventos (de grande e pequeno porte) cancelados ou postergados. No caso paulista havia a necessidade que algumas fases fossem percorridas, até que alguma região tivesse o aval para reunir algumas pessoas em espaços destinados para eventos novamente. E após mais de sete meses, as autoridades locais determinaram a implementação da fase chamada de Verde e que possibilitaria o retono do público aos eventos. Para tanto e devido aos riscos, um protocolo foi redigido envolvendo obrigatoriedades como: distanciamento entre as mesas (a plateia deve permanecer sentada); obrigatório o uso de máscaras; sanitização dos ambientes; aferição de temperatura, tanto para os trabalhadores, quanto para o público, que será extremamente limitado em todas as situações.

E em um passo corajoso, a banda Krisiun, a produtora Hiperion (a quem nós do HB agradecemos a gentileza e permissão para realizar nosso trabalho) e a casa de shows Carioca Club, realizaram um evento com público presencial, com ingressos limitadíssimos e seguindo as orientações do protocolo em vigor. Realizado no último dia 8 de novembro, essa data já está inserida nas páginas dos livros de história da música pesada nacional. E a equipe do HB, também seguindo as normas e cuidados, esteve presente no local do evento, para relatar esse retorno dos shows, mesmo que sendo do modo chamado de ‘novo normal’.

Eu já estive no Carioca Club diversas vezes, mas em especial dessa vez a expectativa era de encontrar tudo diferente. E isso realmente aconteceu na prática ao observar logo ao chegar, a quantidade pequena de pessoas no entorno da casa de shows. Em condições normais haveria uma enorme fila, muitas pessoas aglomeradas, os bares lotados, mas estamos vivendo tempos diferentes. O show da banda de abertura, o Havok 666, estava previsto para começar as 18h30 e era tranquila a entrada dos fãs no recinto. Já devidamente acomodado em um camarote destinado para quem fosse cobrir o evento, chamou minha atenção a disposição das mesas na pista do Carioca Club. Enfileiradas e dispostas em colunas de seis, havia uma distancia adequada entre elas e se o público respeitasse seu limite, certamente as coisas correriam muito bem. Os garçons levavam os pedidos até as pessoas, o que diminuía o fluxo dos que se locomoviam na pista.

Exatamente as 18h30 o Havok 666 entra e destila seu death metal brutal. O duo Felipe Wrecker (bateria) e Andre Brutaller (guitarra e vocal) foram bem recebidos por uma plateia comportada, que acatou os pedidos da organização e se mantiveram em seus espaços reservados. A grande maioria inclusive acompanhou todo o set sem ao menos se levantarem. Claro que a prova de fogo para esse novo, e obrigatório, formato seria mesmo o show principal e ai sim saberíamos como os fãs reagiriam, e se continuariam a colaborar e cumprir sua parte do combinado.

Após uma breve pausa, mais ou menos por volta das 15 para as oito da noite, o Krisiun começa sua apresentação com a costumeira categoria. Elogiar o talento desses músicos é repetitivo, mas necessário. Sempre trilhando o caminho do estilo que eles abraçaram desde o início de sua carreira, o Krisiun é daquelas bandas que nunca decepcionam em suas apresentações e dessa vez não foi diferente. Mesmo com alguns problemas pontuais, o som estava muito bom e os músicos não deixaram de exaltar algumas vezes seu agradecimento aos que estavam presentes, e a possibilidade de estar de volta aos palcos após os meses de quarentena. Importante destacar que a banda sabia que o evento no formato em questão,  mal cobririam os custos, mas que era importante dar o primeiro passo, e que eles estavam dando a cara para bater e mantendo a cena viva.

E falando exclusivamente da apresentação de Alex Camargo, Max Kolesne e Moyses Kolesne, a intensidade e talento que esses caras colocam em cada uma das músicas é de se respeitar. Já se vão mais de 25 anos desde o lançamento do clássico álbum “Black Force Domain” e desde então o Krisiun apresenta trabalhos cada vez mais técnicos e suas músicas, principalmente nos eventos ao vivo, entregam tudo o que fãs desejam. “Combustion Inferno”, “Blood of Lions” e “Conquerors of Armageddon” foram e sempre serão pontos altos de qualquer apresentação da banda e o encerramento com a já mítica música “Black Force Domain” é capaz de fazer estragos dos mais profundos, no bom sentido é claro, pois se trata de um verdadeiro hino do death metal.

O público que se comportou de maneira exemplar durante o show da banda de abertura, como já dissemos, por incrível que pareça, fez praticamente o mesmo durante o início da apresentação do Krisiun, para a minha surpresa. A exceção foram uns dez fãs, que se levantaram e aproveitaram-se da desculpa que iam tirar algumas fotos mais próximas dos músicos, bem ao lado dos fotógrafos profissionais, que estavam trabalhando. Essas pessoas acabaram não regressando para suas mesas de origem e assim resolveram assistir, de forma incorreta, o show ali mesmo, junto ao palco. E o evento foi seguindo e aos poucos outras pessoas tiveram a mesma ideia. Mesmo sendo uma minoria, não era esse o combinado e como já era de se esperar, durante as últimas músicas e o bis, o aglomerado em frente ao tablado principal era intenso. Fãs ávidos por mais espaço acabaram arrastando as mesas e cadeiras que estavam bem de frente para o palco, e liberaram o espaço para começar algumas rodas.

O evento foi diferente, mas nem tanto, pois terminou exatamente como os shows eram antes da pandemia. Pessoas muito próximas, abraços, rodas e pior ainda, sem uso de máscaras de proteção. O problema é que os shows atuais não podem ser como os de antes por um simples fator: a pandemia ainda está ai. Os headbangers foram colocados á prova e deveriam mostrar que a música pesada, em todas as suas vertentes, sempre defendeu posições inteligentes em prol de uma vida melhor. O fã de música pesada clama por mais justiça, por direitos iguais e respeito. E especialmente para esse evento, era a hora de dar uma resposta inteligente para toda a sociedade, colaborando com as regras pré-determinadas e dando o exemplo. Infelizmente aqueles fãs sem o menor bom senso que se aglomeraram, em nome de uma suposta liberdade, prejudicam a todos. E quando eu digo todos, são TODOS mesmo. Os shows com limitações estão acontecendo com os outros estilos musicais e estão dando certo. Muitas pessoas precisam voltar  a trabalhar dentro do segmento do entretenimento, e só conseguirão se houver a colaboração de todos nós. E a colaboração passa por tudo o que é recomendado: manter distância, usar máscaras e respeitar o que foi combinado, que era cada um em sua mesa.

Muita coisa deu certo, pois a maioria dos presentes cumpriu seu papel sendo conscientes e o que deu errado tem que servir de aprendizado para uma nova oportunidade, pois eu particularmente, não acredito que nossa situação atual vá mudar a curto prazo. O metal e seu público também terá que se adaptar. E sim, todos nós queremos, desejamos e precisamos muito que o show continue, mas as vidas também.

(Créditos das fotos: Jéssica Marinho)

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